Há projectos vínicos para todos os gostos: os que se herdam,
os grandes, os megalómanos, os pirosos, os pretensiosos, os modestos, os
poéticos ou românticos, os nostálgicos, os filosóficos, os d’hoje-prá-amanhã,
os vai-se-fazendo... haverá mais, mas basta.
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O Quinta do Monte Xisto está na categoria dos vai-se-fazendo,
com uma parte de romântico, com toques de poético e filosófico, estes dois que
se interligam e não se sabe bem onde está um e o outro.
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Justifico: poético, porque há todo um despojamento de brilho
e adorno que remete para a felicidade. Filosófico, porque tudo tem um sentido e
uma lógica, resultante de pensamento, diálogo e ponderação. Romântico, porque
se faz no afecto duma família (pai, mãe e três filhos), que transmite (sabe-se
pela conversa) esse amor à viticultura e ao campo. A componente vai-se-fazendo
é porque passaram-se 20 anos (vinte) até que saísse o primeiro vinho. Tudo
comprado com dinheiro da algibeira, sem empréstimos nem alavancagens.
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A espera valeu. É um GANDA vinho! A colheita de 2011, ano
dourado no Douro, foi posta ao léu em Julho, e arrebata. Não acredito
(completamente) que outras, experiências e protótipos, não tivessem qualidade
para os enófilos. Dou o meu cavalo, espada e feudo para provar esses
números-zero, usando a linguagem dos jornais,
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Antes que me esqueça; a equipa é formada pelo casal João
Nicolau de Almeida e Graça Eça de Queiroz Cabral, e pelos filhos Mateus, João e
Mafalda. Já se percebeu pelo apelido que não são paraquedistas que saltaram de
algures e caíram no Douro. São gerações e trabalho e reconhecimento.
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Tudo começou num passeio (ou algo vagamente parecido) de
João Nicolau de Aldeia (pai) numa zona do concelho de Vila Nova de Foz Côa. Alguém
o chamou para ver uma parcela de terreno que estava a venda. Viu, gostou,
negociou, comprou, patati-patata, quis mais, patati-patata , andou anos atrás
de quem quisesse vender e de quem ainda teria de assinar... o calvário do
costume quando se quer comprar terra em Portugal; tudo micro, tudo dividido por
20 gerações sem partilhas assentes, herdeiros que não se entendem, muita
conversa para convencer a vender... Calvário, já disse. É ainda mais
complicado, mas basta.
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A «quinta» não tinha nome, porque não existia. Chamaram-lhe
do Monte Xisto, porque é isso que a forma. Fica em Vale de Cobrões, mas o nome
não dava jeito e lembrava vale de cabrões... quiçá não terá sido esse o topónimo
original. O cerro situa-se entre os 250 e os 320 metros de altitude, tem
vertentes voltadas a Norte e a Sul. Mais complexidade?
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Foram 12 anos para conseguir juntar 40 hectares dum cerro de
xisto sem grande uso. Um calhau com algumas oliveiras muito velhas e pouco mais
(espero que se lembre de fazer azeite). Em 2003, a família Nicolau de Almeida
plantou dez hectares de vinha, quase toda tinta. A uva branca que lá há, da
casta rabigato, talvez possa um dia dar à luz umas garrafas.
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Os dez hectares de vinha são compostos (a grosso modo) por
touriga nacional (5,5 hectares), touriga franca (2), sousão (1), rabigato
(0,5), tinta francisca (0,5) e tinto cão (0,5). Há ainda umas pequenas parcelas
de tinta roriz, touriga brasileira, tinta barroca, tinta da barca e alicante
bouschet.
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Fizeram-se várias experiências com castas, todas do Douro.
Porém, a natureza não é toda igual, mesmo numa mesma sub-região. Algumas uvas
não se deram bem. De toda esta paleta de uvas, aproveitaram-se para este vinho
as de touriga nacional, touriga franca e sousão.
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Vinha cultivada em modo de produção biológico. O rótulo não
mostra, porque não é ideia vender «bio». Não é um projecto de filosofia «bio»
(que só por si não é nem bom nem mau), mas de aproveitamento do que a natureza
dá. As condições naturais do Monte Xisto permitem que seja bio, sem remorosos
nem dúvidas. E João Nicolau de Almeida sabe ao que cheiram e sabem umas
«mesmas» uvas tratadas com produtos de síntese doutras que ficam apenas
empoeiradas.
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Os Nicolau de Almeida quiseram ter o Douro dentro da garrafa...
mais do que a região, quiseram o local. O monte de xisto, que foi trucidado por
três vezes até que desse solo arável, entregou a sua mineralidade. As uvas
foram pisadas a pé em lagares de granito e o vinho estagiou 18 meses em pipas
de carvalhos francês e austríaco.
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Este vinho é um encanto. Arrebatador, mas não tirano.
Sedutor, mas não possessivo. Profundo, mas não sombrio. Na difícil tarefa de
escolher uma só palavra para o definir, exercício estúpido e masoquista a que
me submeto voluntariamente, direi: majestade.
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É um mundo num copo. Vinho de enorme complexidade, em que
aromas dançam sem se substituírem, que evoluem com o tempo no copo sem se
despedirem do provador. Vão e regressam. Brincam às escondidas e à apanhada. Que
aromas!
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No folguedo olfactivo dançaram rosas, violetas, pétalas de
laranjeira (!), uma pitada de casca de laranja, cerejas, ameixas, romãs, um
toque de noz-moscada e de cravinho... e xisto. Os seus perigosos 14 graus de
álcool são mansinhos. Diria que sonsos, pois a frescura deste vinho camufla-os
e quando nos levantamos é que percebemos... O corpo tem uma dimensão... talvez
uma quinta dimensão. É um Bentley (desde que visitei a fábrica que ando com a
ideia fixa de ter um) em aceleração. Pesado? Não! Colossal. Desliza elegante,
avança suave, com densidade. Profundo, seco, longo, com garra. Um final bombástico.
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A estreia não poderia ter sido melhor!
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Origem: Douro
Produtor: João Nicolau de Almeida & Filhos
Nota: 9/10
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