terça-feira, fevereiro 27, 2007

Invejas vínicas

Volta e meia tropeço em leituras ou discursos das invejas vitivinícolas portuguesas reboliça-me o espírito. Não devia, porque não sou produtor, mas cansa-me a choradeira de quem só olha para o sucesso dos outros em vez de arrumar a casa.
Quando o vinho não se vende e os anos passam e a decadência se mantém há três opções a tomar: abandonar o negócio, deixar tudo na mesma até que o mercado venha hipoteticamente a dar a volta ou mudar alguma coisa e ir ao encontro dos consumidores. Entre estas opções há zonas de charneira, de diferentes batimentos de luz, que permitem soluções várias.
Cada uma destas posturas é revestida por discursos: a culpa ou o mérito está nos próprios, a culpa ou o mérito está nos outros ou a culpa e o mérito trabalham-se porque estão em nos próprios e em factores exógenos. O discurso da inveja tende a pôr a culpa apenas nos outros.
Parece-me claro que é nítido para toda a gente que o Alentejo é a região vitivinícola de maior sucesso em Portugal. Goste-se ou não do perfil genérico dos seus vinhos. Os alentejanos têm batalhado pelo sucesso e têm, felizmente para eles, conseguido o reconhecimento do mercado. Há algum mal nisto? Sabe-se também que o Douro está irrequieto e que, pelo menos, para os enófilos há um forte reconhecimento do trabalho ali desenvolvido. Haverá algum mal nisso?
Isto vem a propósito de ler e ouvir comentários depreciativos sobre o gosto do mercado por vinhos mais novos, uma tendência que tem prejudicado produtores de Denominações de Origem Controlada onde o vinho necessita de espera. Bem, o lamento é legítimo, o tom da choradeira e o permanente queixume é que se tornam intoleráveis: Façam-se à vida.
Façam-se à vida, porque o mundo não pára! Façam-se à vida, porque há uma falsa questão no lamento choroso. Numa sociedade de consumo uma dose grande do sucesso passa pela promoção, divulgação e publicitação dos produtos. Não é, por isso, líquido que o sucesso dos vinhos do Alentejo e do Douro (dou estas duas designações porque são as comummente alvo dos ataques) seja apenas por serem novos e fáceis de beber.
Acresce que em todas as regiões existem os chamados vinhos de combate, onde o factor preço é determinante, que são os de grande consumo. Será que o consumidor que está mais atento ao preço vai ligar assim tanto à proveniência? Se em todas as regiões há vinhos de grande consumo refira-se o preço médio das do hectolitro por região plano, por ordem crescente: Beiras (2,31 tinto e 1,79 branco), Estremadura (2,66 tinto e 2,16 branco), Trás-os-Montes (2,59 tinto e 2,17 branco), Ribatejo (3,11 tinto e 2,50 branco), Península de Setúbal (3,17 tinto e 2,50 branco) e Alentejo (6,67 tinto e 4,17 branco). O preço médio no continente é de 2,90 para o tinto e 2,35 para o branco.
Estes números deviam fazer corar de vergonha quem faz o discurso da inveja. Ora, os alentejanos mesmo com o preço médio da matéria-prima mais caro conseguem fazer vinho a preço competitivo. Por outro lado, o Douro (incluído em Trás-os-Montes) tem sucesso com valores abaixo da média. Portanto, os produtores durienses sobrevivem mesmo em viticultura de montanha. É óbvio só o preço da matéria-prima faz parte do custo, mas entre essas vantagens e desvantagens estão as regiões em pé de igualdade. É claro que nem só preço pesa na escolha do consumidor, mas é para ultrapassar as desvantagens que é preciso trabalhar e não choramingar invejas.
Façam-se à vida em vez de olhar com invejas para o sucesso dos outros, de culpar os jornalistas pela mudança de paradigma do gosto dos consumidores e de julgar os consumidores e os enófilos como acríticos e acéfalos. A atitude de nada fazer é idêntica à da dança da chuva ou a de ficar sentado à espera que o mundo dê a volta e venha ter connosco.
Não se trata de deixar de fazer vinho como querem ou como sempre fizeram, mas de o saber vender. Em vez de ficarem sentados à espera, apenas com um cartaz à porta da adega, talvez seja melhor mexerem-se.Um exemplo: outro dia entrei num restaurante e entrou-me uma garrafa de vinho da Bairrada pelos olhos. Pedi e bebi-a. Disse-me o dono do estabelecimento que desde que a empresa pediu para ali colocar aquele mostruário aumentaram as vendas. Simples, não? É apenas um pequeno gesto individual dum produtor. Muito mais se pede aos produtores, em conjunto, duma região. Façam-se à vida e não lamentem a alegada sorte dos outros, que é fruto do seu trabalho.
Aliás, o queixume é até injusto para os produtores que individualmente têm sucesso nas regiões produtores menos favorecidas pelas escolhas do mercado. Só para citar alguns casos de qualidade , porque é impossível nomear todos: Luís Pato, Manuel dos Santos Campolargo, Quinta das Bágeiras, Quinta do Monte d'Oiro, Quinta da Lagoalva de Cima.
Num mundo global e quase instantâneo é notável como é que só algumas Comissões Vitivinícolas Regionais (CVR) têm páginas na internet. As páginas das CVR são pesadas, feias, má leitura, com introduções pesadas e escusadas. São poucas e há que há... Bem, a do Alentejo é claramente a melhor, embora a do Douro e Porto não seja nada má. É que saber vender não é apenas pôr o selo com o preço direitinho. Depois, ainda estranham!...

quinta-feira, fevereiro 22, 2007

O fresco Bucelas

Portugal é um país quente. Esta afirmação redonda tem duas leituras: que o país se presta mais para a produção de tintos e que no Verão as gargantas pedem muito por brancos leves. O Vinho de Bucelas, que é sempre e somente branco, tem uma cor citrina, aroma e sabor fruta e acidez.
No centro-sul do país, a região de Bucelas contraria a probabilidade e faz nascer um dos mais notáveis brancos portugueses, facto a que não será alheia a relativa proximidade do mar. Na verdade, o oceano Atlântico não se avistará de Bucelas, mas chega lá pelo vento. A essência deste vinho está na frieza do Inverno e na amplitude térmica do Verão, garantem os entendidos.
Não me lembro quando bebi o meu primeiro Bucelas, sendo certo que em minha casa sempre se preferiram mais os tintos do que os brancos. Não me recordo, pois, se foi por lá que o traguei. Contudo, sei que não passo um ano sem eles. Mal as temperaturas sobem e torna-se uma necessidade nos folguedos, a par do Vinho Verde. Porém, enquanto nos néctares nortenhos tenho tido algumas desilusões, nos Bucelas ainda não tive dissabores de maior.
A demarcação de Bucelas aconteceu em 1907. Porém, a fama já existia. O cultivo da vinha remontará ao temo dos Romanos. Passada, a costumeira origem sobre os vinhedos portugueses, há nota de que o marquês de Pombal se terá interessado pelas vinhas de Bucelas e lá terá mandado plantar bacelos renanos. Outros, mais nacionalistas, garantem que terão sido vides portugueses a ir povoar campos germânicos ainda no tempo dos cruzados, quando estes escalavam a costa lisboeta no regresso da Terra Santa. No tempo de William Shakespeare era já exportado para Inglaterra, onde seria conhecido por «Charneco». Contudo, a fama maior e mais duradoura terá surgido com o desembarque das tropas britânicas que vieram bater-se contra os exércitos napoleónicos. Consta que o duque de Wellington o apreciava de tal modo que o terá levado de presente ao Rei Jorge III, ficando celebrizado por «Lisbon Hock» (Hock, termo que os britânicos atribuem a qualquer vinho branco do Reno) e tendo-se tornado habitual na corte. Eça de Queiroz terá sido também um seu apreciador e a ele se referiu em «A Relíquia».
O Vinho de Bucelas apenas pode ser branco, produzido a partir das castas arinto (75% do encepamento), esgana-cão e rabo-de-ovelha. A delimitação geográfica é a freguesia de Bucelas e parte das freguesias de Fanhões (Fanhões, Ribas de Cima, Ribas de Baixo, Barras e Cocho) e de Santo Antão do Tojal (Pintéus, Meijoeira e Arneiro), tudo lugares do concelho de Loures. Actualmente, além do vinho branco tranquilo podem fazer-se espumantes e colheita-tardias, duas inovações recentes e cuja ousadia foi de António João Paneiro Pinto da Quinta do Chão do Prado.
Para 2008 está marcada a abertura dum Museu do Vinho de Bucelas, a cargo da Câmara Municipal de Loures. Encontrei notícia de que irá custar dois milhões de euros, de que terá uma biblioteca e loja de vinhos, mas não onde irá situar-se. Paciência...
Felizmente a Área Metropolitana de Lisboa não é elástica e o concelho de Loures é grande o suficiente para ainda ter espaços rurais, pelo que ainda há espaço bastante para quintas, vinhas e bom vinho. Valha-nos isso!

Nota: Fotografia retirada do sítio da Quinta do Chão do Prado.

quarta-feira, fevereiro 21, 2007

Esporão Private Selection Garrafeira 2003

Na famosa «noite dos Óscares» da Revista dos Vinhos provei um vinho que muito me contentou a noite e que anda na minha memória a alegrar-me os minutos. Trata-se do Esporão Private Selection Garrafeira de 2003, que tem notas de fruta e de lenha de azinho, muito envolvente e sensual... e um belo final!

Região: Alentejo
Produtor: Finagra
Teor alcoólico: 14,5%
Nota: 8/10

Vila Santa 1992

O vinho é um livro vivo. O que se bebe hoje é diferente do que poderia ter sido bebido há um ano e daquele idêntico guardado para daqui a uns anos. Quando só se tem uma garrafa apenas se conhece o vinho dum momento e não o vinho que nela vive, pois para isso seria preciso tê-lo bebido desde a sua infância e guardá-lo e bebê-lo a espaços até que se revelasse apenas senil, época em que se saberia ter passado para o outro mundo. Conhecer um vinho é tê-lo bebido muitas vezes e ter dele memórias.
Infelizmente, julgo não ter de nenhum vinho um vínculo que me permita ter essa perspectiva, mas uma garrafa que me trouxeram fez-me pensar: O que terá sido este vinho no ano em que saíu para a rua? Não arriscaria muito se apostasse como o terei bebido. Porém, à data não fazia apontamentos... infelicidades que agora lamento.
O que posso agora dizer deste vinho tinto? Que estava belíssimo, em boa forma e que bom prazer me deu. Muito elegante e macio.

Região: Regional Alentejano
Produtor: J. Portugal Ramos
Teor alcoólico: 13%
Nota: 6/10

segunda-feira, fevereiro 19, 2007

Parabéns Revista de Vinhos

A Revista de Vinhos faz 17 anos e só isso é já motivo de satisfação e de «parabenzação», porque são quase duas décadas a informar e formar os enófilos portugueses e a exigir qualidade junto dos produtores, através da crítica.
Mas há mais motivos de celebração: a festa de aniversário da publicação, que aconteceu na passada sexta-feira, 16 de Fevereiro, na Alfândega do Porto. O evento, também conhecido por «a noite dos Óscares», foi de animado convívio. Comeu-se muito bem (repasto a cargo do chefe Hélio Loureiro e serviço da Solinca) e bebeu-se em grande nível (vinhos escolhidos pela redacção da Revista de Vinhos).
Uma nota claramente positiva foi o convite feito pelos responsáveis da Revista de Vinhos aos seus concorrentes directos da Blue Wine e da Wine Passion. Só fica bem o cavalheirismo e uma saudável convivialidade.
Quanto aos vencedores... é comprar a Revista de Vinhos!

sexta-feira, fevereiro 16, 2007

Juras

Prometi-me que este ano iria beber menos referências vínicas e concentrar-me em vinhos que realmente gostasse. Isto porque muito do que se bebe acaba esquecido ou sem história. Porém, parece haver na minha natureza um impulso de curiosidade. Ai! Pareço um político, ao não cumprir as promessas...

terça-feira, fevereiro 13, 2007

domingo, fevereiro 11, 2007

Decider - sidra

Bem sei que Portugal não é um país onde haja tradição de sidra, mas colocarem produtos desinteressantes no mercado também era escusado. A sidra é uma bebida, uma espécie de vinho, que se faz a partir de maçãs e que é tradicional no Norte de Espanha e em França, além doutros locais da Europa. A bebida tem, obviamente, notas de maçã e uma certa acidez, pelo que resulta numa bebida bem fresca. A Decider, pelo contrário, só tem maçã, faltando-lhe a acidez. E falta-lhe a alma, aquilo que há nos vinhos e na comida, mas falta nos produtos meramente industriais. A Decider é muito adocicada para sidra, é chata, aborrecida e mortiça. O resultado é mais um refrigerante do que uma sidra. Um refrigerante alcoólico, já se vê. Agora porgunto-me porquê? Servirá apenas para preencher um nicho no segmento das chamadas soft-drinks com álcool, o que interessa vender, só isso e apenas isso. Não importa se o consumidor é incorrectamente induzido ou as expectativas ficam muito abaixo do esperado. Fizeram uma bebida à base de maçã e chamaram-lhe sidra, sem qualquer respeito pelas verdadeiras. Se fizessem à base de uvas ter-lhe-iam chamado vinho. Tecnicamente será sidra, mas quem procurar sidra dentro duma garrafa de Decider encontrará apenas refrigerante. Deveria haver respeito e pudor. Em Portugal continuamos sem poder beber sidra!

Produtor: Unicer
Teor alcoólico: 4,7%
Nota: 2/10

sexta-feira, fevereiro 09, 2007

Dar uma volta às DOC

NOTA: DEIXEI DE ME REVER NESTE TEXTO.

Uma denominação de origem controlada (DOC) deve servir para atribuir prestígio e estatuto. Não creio que exista alguém que diga o contrário. Parece-me consensual. Porém, uma sigla tão pequenina é potencialmente problemática.
Um dos problemas está no conteúdo da palavra qualidade. O que é a qualidade? Outro dos problemas é a tradição. Até onde se pode inovar? Um terceiro engulho é a área de influência. Até onde se pode ir? Depois há a questão da instituição em concreto das demarcações. Onde se situa a realidade e onde começa o sonho? Talvez haja mais situações de conflito, mas vou centrar-me nestes três pontos.
Primeiro, quero dizer que, para mim, faz todo o sentido a existência de DOC. Não penso é que faça sentido o número que existe em Portugal. Apagar algumas, por que não? Mesmo desagradando a algumas pessoas, talvez faça algum sentido.
O sucesso leva, muitas vezes, a invejas. O mais grave é que há invejosos que não têm pejo em pendurarem-se no trabalho, esforço, brio e mérito dos outros. Quando um produto, no caso vinho, ganhava fama surgia célere quem se dedicasse a falsificar ou a adulterar mercadoria, por forma a beneficiar também ou mais ainda.
Os mixordeiros eram (e talvez ainda sejam) muitas vezes oriúndos dos mesmos locais dos bons produtores, pelo que se associaram regras de práticas às exigências de proveniência nas normas das denominações. A mais antiga demarcação portuguesa (quiçá do mundo – os húngaros e os eslovacos teimam que não) data de 1756. O marquês de Pombal decretou que se pudesse punir com a pena de morte quem adicionasse bagas de sabugueiro ao vinho ou quem levasse vinho para dentro da demarcação.
Como não havia marcas, que só se foram solidificando e enlaçando fortemente ao vinho mais tarde, a preocupação era a de proteger as proveniências. O consumidor apreciava, por exemplo, os vinhos do Dão ou de Colares... não preferia ainda marcas, quanto muito tinha os seus comerciantes predilectos, onde se abastecia habitualmente. Note-se que a marca mais antiga de vinho de pasto portuguesa data de 1850 (Periquita) e que não há muitas mais marcas com identidade tão provecta. Mesmo o Pêra Manca referia-se primeiramente a uma denominação geográfica, antes de se transformar num nome comercial.
Num país sem marcas comerciais de vinho, onde a agricultura tinha um grande peso económico e, dentro desta, a viticultura era a rainha, houve a preocupação de proteger os bons lavradores. O país está tapado de DOC: ao todo temos 29. No entanto, dentro destas quase três dezenas há sub-regiões, cujos topónimos podem surgir nos rótulos, como, por exemplo, Monção, Valpaços, Portalegre e Évora.
Bem, das 29 DOC uma é de aguardente (Lourinhã), pelo que baixam para 28. O total sobe novamente um degrau, porque não estava contemplado o Douro, que apesar de ser coincidente com a do Vinho do Porto é outra denominação. Agora, se todas se começam a usar denominações de todas as sub-regiões chegaríamos ao bonito número de 55! (Note-se que há DOC em que as subregiões somam o total da área, caso do Alentejo, e noutros em que isso não acontece, como a dos Vinhos Verdes, pelo que este número não resulta do somatório de todas as sub-regiões). Bem, mas esse cenário não se põe. O número que vale é mesmo o 29.
O que me pergunto é se existem mesmo 29 DOC. Existem? Com todo o respeito que me mercecem os vitivinicultores dessas regiões, devo perguntar se faz sentido falar-se em DOC que só existem no papel. Será que faz sentido haver DOC e ter de explicar o que são? Não há muito dinheiro para a promoção do vinho português e ainda vai ter de se explicar que uma determinada proveniência existe?
A pergunta é retórica, mas cá vai: alguém bebe ou bebeu Vinho dos Biscoitos? Alguém bebe ou bebeu Vinho de Tavira? Alguém bebe ou bebeu Vinho das Encostas do Aire? Não quero com isto faltar ao respeito aos produtores dessas regiões. Não! Aliás, são apenas exemplos. Poderia citar a maioria das 29 denominações ilustradas no mapa anexo.
Não digo que o vinho dessas proveniências seja mau. Questiono-me apenas se valerá a pena existirem 29 DOC.
É claro que num lado do mercado estão os países do chamado novo mundo, onde tudo é feito em grande e, teoricamente, massificado. Do outro está um mundo rural de pequenas explorações e tradição, onde as coisas se fazem com uma outra atenção. Mas será que o vinho do velho mundo é melhor? Será que vale a pena explicar que existe vinho duma região se esse vinho não trouxer nada de extraordinário ao consumidor e/ou enófilo?
Dir-se-á que há vinhos que têm especificidades próprias tão únicas que justificam a existência duma DOC. Aceito o argumento. Porém não me parece que o justificativo sirva e se aplique a 29.
Quando se fala em qualidade até se arrepia a pele a muita gente e acabam sempre os antepassados a serem chamados à discussão. Dói sempre a honra a muita gente. Somos um povo de gente sensível e pouco dado a tolerar críticas. Ainda assim vou respingar.
Às vezes fico banzo com a qualidade de alguns vinhos. Se é suposto a inscrição dum topónimo indicar qualidade, por que é que há vinho mau certificado? Foi engano? Não creio! É corrupção? Não creio! Então o que é? Julgo que pela a dificuldade em dizer-se que não a um lavrador. Sempre se fez assim lá na terra, pelo que o vinhito está certo. Por outro lado, as entidades certificadoras vivem da venda dos selos de garantia. E há vinhos imbebíveis e intratáveis... e não duma região em concreto, mas de várias. Ou então é o meu padrão de exigência que está desajustado à realidade.
Porém, a noção de qualidade evolui. Volta e meia surgem notícias de desaguisados entre vitivinicultores sobre o rumo a dar ao vinho e à certificação. Há quem prefira a tradição, quem queira a inovação, quem escolha meios caminhos. Haverá sempre opiniões para tudo. Haverá em todas as rotas bom e mau vinho. Porém, quando se certifica há limitações que se impõem. Que liberdade se dá? Que liberdade se pode dar? Todas as opções têm reflexos no mercado. Por último, nesse domínio, a decisão é cruel: o mercado compra ou não? O consumidor valoriza ou paga pouco? Todas as decisões têm um custo.
Mas voltando ao vinho propriamente dito e ao termo denominação. Olho para o mapa das DOC e vejo o mapa da administração pública portuguesa num local. Continuo sem perceber por que é que o Alentejo é um, mas no vinho muda de nome. Explico melhor: percebo que existam os vinhos regionais Terras do Sado, não entendo é que a área se alargue pelos quatro concelhos alentejanos do distrito de Setúbal.
Não me venham com o argumento de que o «terroir» é diferente, porque nesse não caio. Claro que a península de Setúbal é diferente do Alentejo. Claro que o litoral é diferente do interior. Mas é claro que Alcácer do Sal, Grândola, Sines e Santiago do Cacém são diferentes de Palmela, Setúbal e Montijo. Sim, o litoral é diferente do interior. Pois é! Mas o litoral é uma faixa e a jurisdição da Península de Setúbal é larga. Por outro lado, Odemira é tão litoral e tão interior como qualquer um daqueles quatro concelhos setubalenses, mas parece-me que só não está na CVR da Península de Setúbal porque pertence ao distrito de Beja. Faz sentido? Por outro lado, não percebo como vinhas contíguas, com o mesmo solo, uma em Alcácer do Sal e outra em Ferreira do Alentejo dão uma um Regional Terras do Sado e outra um Regional Alentejano. São diferentes? Faça-se uma prova cega, um derby, e avalie-se. Eu aposto no empate, na igualdade.
Todavia, os quatro concelhos alentejanos do distrito de Setúbal (CVR Península de Setúbal) e os concelhos alentejanos circundantes só geram vinhos regionais. Pergunto-me porquê? Serão piores? Serão os vinhos das oito sub-regiões alentejanas superiores ou claramente distintas? Não me parece. Clara e definitivamente, não me parece mesmo nada.
Para baralhar mais as coisas pode afirmar-se que muitos vinhos regionais são melhores ou muito melhores ou muitíssimo melhores que congéneres que ostentam um topónimo no rótulo. Para baralhar mais, à semelhança do que aconteceu em Itália, parece haver em Portugal quem queira fazer vinhos de mesa de topo. E constou-me que vai surgir a Indicação Geográfica Portugal, o que se saúda.
Quando olho para o mapa com as 29 DOC vejo um país vitivinícola que já não existe e um outro que não faz sentido existir. Parece-me que as DOC precisam de levar uma volta. Grande.

Uma saúde por Setúbal

Ouvi dizer a gentes de Setúbal que seria bom que se ganhasse o hábito de chamar apenas o nome da cidade ao vinho e se deixasse cair o moscatel. A ideia é tornar comum pedir um Setúbal como quem pede um Porto. Tem alguma lógica, faz algum sentido. Não dou opinião, não é a minha guerra.
Contudo, noto duas coisas contraditórias: a existência de um hábito sonoro, quase musical, de dizer Moscatel de Setúbal e o facto de não existir uma só casta moscatel, mas várias, até em Portugal. Se pode ser desperdício comercial deixar perder a palavra moscatel, não é menos verdade que de uma família de uvas doces se fazem vários vinhos.
Para mim, que tenho do lado do meu pai umas gerações de lisboetas em cima, o moscatel é setubalense. O Moscatel do Douro só o conheci muito mais tarde. A minha memória afectiva e as recordações propriamente ditas estão com o generoso de a Sul do Tejo.
Notei já que há alguma rivalidade entre as gentes setubalenses (sentido peninsular) e as durienses quanto ao melhor moscatel. Diria que haverá bons e maus vinhos em toda a parte e que um bom moscatel dum local é sempre preferível a um medíocre moscatel do outro. Para não ser escorregadio confesso que, tendo em conta os que provei, o paladar encanta-se mais com os moscatéis do Sul.
Mas já que refiro uma hipotética disputa entre moscatéis tenho de notar que o de Setúbal e o do Douro são feitos com castas diferentes. O Moscatel do Douro faz-se com uvas da casta moscatel galego (moscatel de Frontigan), enquanto o Moscatel de Setúbal nasce de bagos das castas moscatel de Setúbal (moscatel de Alexandria - branca) e moscatel roxo (tinta). Todas estas castas conhecem diversas outras designações, o que prova a sua dispersão, embora a roxa seja tida como inteiramente portuguesa.
A vinha é uma cultura antiga na península Ibérica. Os romanos já faziam vinho por cá. Há registos medievais de produção vinícola em terras setubalenses e até referências a exportações para Inglaterra. Porém, duvido muito que os vinhos medievais tivessem alguma coisa a ver com os moscatéis actuais. Por um motivo: a aguardentação. Julgo saber que a técnica foi descoberta no tempo da expansão marítima e desenvolvida posteriormente ao notar-se que o vinho voltava melhor do que tinha partido. Ao certo não se sabe quando se começou a fazer o Moscatel de Setúbal tal como hoje o conhecemos.
Contudo, parece que em 1797 já era citado numa ementa da Ordem do Hospital de São João de Jerusalém (Ordem de Malta), classificado pelos monges-cavaleiros como sendo «o precioso Setúbal». De ciência certa é a data da instituição da demarcação da região, que aconteceu em 1907/8.
O Moscatel de Setúbal é mais um vinho fortificado português, ou seja que recebe uma adição de aguardente vínica. Tanto para o branco como para o tinto (roxo) há limites mínimos a cumprir. Segundo as normas do Instituto da Vinha e do Vinho, 67% dos encepamentos têm de ser das castas recomendadas. Contudo, a designação moscatel só é atribuída quando 85% do vinho é de uvas moscatel. Uf! É um tratado!
A obtenção da certificação implica ainda que as uvas sejam provenientes de vinhas situadas nos concelhos de Setúbal e Palmela, e em parte da freguesia do Castelo, no concelho de Sesimbra.
Felizmente, as mangas da metrópole lisboeta e as abas de Setúbal ainda não manjaram as terras necessárias ao moscatel. Segundo os dados que apurei, existem menos de 350 hectares vinha moscatel na península de Setúbal, das quais apenas 11 são de uvas tintas.
O Moscatel de Setúbal mais comum é o branco. O moscatel roxo encontrava-se praticamente extinto. No entanto, nos últimos anos várias casas da região investiram em novas vinhas desta casta. Por outro lado, assistiu-se por parte dos enófilos uma maior procura, guiada ora pela saudade ora pela curiosidade. Tanto um como outro são vinhos que sabem envelhecer.
O Moscatel de Setúbal (branco) é commumente descrito como tendo um paladar melado e citrinos. Já que se trata de um vinho destinado a digestivo ou a acompanhar sobremesas, deixo como sugestão alguns doces de tradição setubalense: tortas de azeitão, esses, queijinhos e amores.

quinta-feira, fevereiro 08, 2007

O adeus do Bastardo

O Tejo é hoje quase só um rio. O meu pai, que nasceu em 1924, lembra-se de o ver cheio de vida, com fragatas e faluas, muita gente nos cais e golfinhos no estuário. Eu só me lembro de aprender nele as bandeiras que os navios traziam. Hoje são poucos os vasos, o porto está mortiço.
A cidade tornou-se metrópole e abraçou os arrabaldes. Os locais onde o meu pai ía de passeio são hoje subúrbios. Entre o tempo das hortas, olivais e vinhas até já houve um outro tempo, momento de fábricas e de operariado. Mas isso são contas que agora não importam.
No vai-e-vem desse Tejo de outrora abastecia-se a capital: o sal de Alcochete, os cereais do Alentejo, o azeite do Sul e, é claro, o vinho. Vinho? Sim, vinho. Não apenas o precioso e fino Moscatel de Setúbal, mas também o de pasto de Palmela. E não apenas esses.
Antes de ir onde quero, passo revista à actualidade: A denominação de origem controlada de Setúbal abrange os concelhos de Setúbal e de Palmela e parte da freguesia do Castelo, no concelho de Sesimbra. A demarcação de Palmela é quase coincidente, mas um pouco mais vasta, alargando-se ao concelho do Montijo. Depois há os vinhos regionais Terras do Sado, que abrangem todo o distrito de Setúbal (incluíndo os seus quatro concelhos alentejanos).
Porém, se é óbvio hoje o cultivo da vinha em Alcácer do Sal, por exemplo, não é lúcido afirmar-se que exista vinha em Almada ou no Barreiro, devido ao avanço da metrópole. Contudo, a vinha teve um peso significativo na actividade económica das povoações de Entre o Tejo e Sado. Um facto que se traduz pela presença de cachos nos brasões dos concelhos de Alcochete, do Barreiro e da Moita, e nos das freguesias de Caparica (Almada), Charneca da Caparica (Almada), Lavradio (Barreiro), Santo António da Charneca (Barreiro), Pegões (Montijo), Santo Isidro de Pegões (Montijo) e Paio Pires (Seixal). Além destes ainda há o de Samouco (Alcochete) que tem uma pipa.
No entanto, o reconhecimento da qualidade dos vinhos da margem esquerda do Tejo tardou a acontecer. A menos que se considere madrugadora o estabelecimento da demarcação do Setúbal que aconteceu em 1907. Já a denominação Palmela só se verificou em 1997. Ainda assim, Lisboa bebeu muito vinho proveniente da outra banda do rio. Um deles tinha uma fama particular: o Bastardinho.
Este vinho era proveniente de uma área vitícola que se estendia de Alcochete até ao Barreiro, sendo communente designado por vinho do Lavradio; outras fontes referem-no como típico em toda a península de Setúbal. Este vinho era proveniente, porque ao que consta dele já só resta o que a firma José Maria da Fonseca dispõe em Azeitão. A empresa refere que a última vinha foi arrancada (até me dói escrever isto) em 1983.
Contudo, constou-me que um indivíduo se dedica todos os anos a bater de porta em porta dos quintais a recolher as poucas uvas que ainda ousam nascer na orla ribeirinha do Tejo e faz o que lhe compete de vinho. Quem será esta personagem?
Tanto quanto sei, a empresa José Maria da Fonseca além da reserva em barril, que volta e meia engarrafa umas dúzias de frasquinhos, tem tenções de plantar uns tantos pés desta cepa. Porém, a «coisa» levará 30 anos, para dar vinho. Um suplício, portanto.
É um vinho ao qual é adicionada aguardente vínica e que estagia em barricas usadas. As descrições coincidem nos frutos secos e figos, havendo ainda referências a especiarias e menta. Eu, confesso, que nunca o provei. Sei onde se vende e um dia ainda perco a cabeça e o amor a uns tantos euros.

Nota: O brasão do Lavradio demonstra a importância da vinha na economia da Terra. O Bastardinho era também conhecido por Vinho do Lavradio.

(Esperança no) Vinho de Colares

O Vinho de Colares está-me na memória. Não que o tenha bebido muito, mas porque foi dos primeiros que me deixaram beber, dos primeiros a impressionar-me e dos que mais me impressionaram.
É um facto que a juventude é impressionável, mas não fui o primeiro a fascinar-me com o Vinho de Colares nem o único. Antes de mim e a par, outras pessoas têm um fascínio e uma nostalgia. A fama e a grandiosidade levaram a que o importante professor Ferreira Lapa, referência ainda hoje no campo da vitivinicultura, a afirmar: «é um vinho que possui todos os requisitos e qualidades dos vinhos tintos de Medoc, é o vinho mais francês que possuímos». Eça de Queiroz foi outro apreciador destes néctares. Contudo, vivo quase no tempo errado para o beber. Quase, porque há ainda disponível no mercado umas tantas garrafas de anos apontados como anteriores à decadência da região. Quase, porque julgo haver motivos de esperança.
A gloria de Colares sempre foi o tinto, muito mais do que o branco. A dor que causa e se sente é a escassez da casta ramisco, visto que a geradora do branco (malvasia de Colares) não ser a mais louvada. A decadência da vinha em Colares liga-se à proximidade de Lisboa, ao aumento de importância económica do turismo, com incremento das casas de campo, das vivendas burguesas e das residênciais de Verão.
A Lisboa elegante e burguesa do século XIX já gostava de ir a banhos para a praia e refrescar-se na aragem da serra de Sintra. A moda da praia das Maçãs levou à construção de uma linha de carro-eléctrico, as casas de fim-de-semana foram somando-se. A beleza da rusticidade saloia, os bons ares da floresta e da serrania e os banhos de mares aumentaram os aglomerados urbanos de Colares, das Azenhas do Mar e das pequenas aldeias limítrofes. Hoje, as antigas hortas, pomares e vinhas nos areais vão rareando e algumas propriedades estão abandonadas ou desmazeladas.
Há duzentos anos era tudo muito diferente. O século XIX foi o tempo do Vinho de Colares e por diversas razões: uma delas foi a filoxera, outra a da moda e o reconhecimento da qualidade. A praga do pulgão que chegou a Portugal em 1864/5 e dizimou as vinhas europeias não fez estragos em Colares, antes pelo contrário. O facto de as vinhas estarem plantadas em solos arenosos evitou o ataque do insecto. Por outro lado, a escassez de vinho permitiu a valorização dos preços dos lavradores que o tinham e abriu espaço para que estes vinhos ganhassem fama. É nessa centúria que é criada, por Gomes da Silva, uma das mais emblemáticas casas: que viria a chamar-se de Viúva Gomes & Filhos, fundada em 1808.
O oceâno Atlântico faz-se sentir grandemente na demarcação de Colares, através dos fortes ventos marítimos portadores de salinidade. As parcelas de terreno são de pequena dimensão e encontram-se muitas vezes cultivadas com vinhas e macieiras rasteiras, assim plantadas para melhor enfrentarem a ventania. Para protecção adicional são colocadas paliçadas de cana.
Pelo facto das plantas estarem na sua maioria em solo arenoso e terem ficado imunes à filoxera ainda hoje as cepas se encontram em chamado pé-franco, ou seja não estão enxertadas em vides americanas, resistentes ao pulgão.
Nos tempos áureos do século XIX, a área circundante à vila de Colares plantada com vinha pode ter chegado aos mil hectares. A região demarcada de hoje representa 22 hectares, dos quais nem todos estão explorados. Refira-se que aqui existem vários conceitos: área de vinha próxima à vila, demarcação e área de chão de areia. Todavia, de mil para 22 hectares há uma brutal diferença.
Para se ver o estado a que se chegou refiram-se outros números. Tanto quanto sei, actualmente há apenas dois produtores de Vinho de Colares. A jovem Sociedade das Vinhas de Areia e a veterana Adega Regional de Colares, que conta com cerca de meia centena de associados e vende uma boa parte da sua safra a duas empresas engarrafadoras (Viúva Gomes & Filhos e António Bernardino Paulo da Silva).
Num país que se diz titular da mais antiga demarcação do mundo (Douro), esta não é muito idosa, embora seja das que mais cedo foi reconhecida. No entanto, não tem um século. A região só foi demarcada em 1908 por decreto de Dom Manuel II e abrange as freguesias de Colares, São João das Lampas e São Martinho (todas no concelho de Sintra).
A região de Colares divide-se em duas subzonas geológicas: uma arenosa e outra argilo-calcária (chão rijo). Porém, apenas os vinhos provenientes maioritariamente de solo arenoso podem ostentar a denominação de Colares.
O Vinho de Colares tanto pode ser tinto como branco, sendo que o primeiro tem de conter uma percentagem mínima de 80 por cento da casta ramisco e o segundo pelo menos 80 por cento da casta malvasia. Tanto o tinto como o branco pode conter até 10 por cento de vinho proveniente de parcelas de chão rijo. No chão de areia podem ainda ser cultivadas as castas tintas castelão, molar e parreira matias, e as brancas arinto, galego dourado e jampal. Nestas áreas argilo-calcárias é permitido o cultivo das castas tintas castelão, molar, parreira matias e tinta-miúda, e as brancas arinto, galego dourado, fernão pires, jampal e vital. O Colares tinto está sujeito a um estágio mínimo obrigatório de 18 meses em madeira e de três meses em garrafa. O branco tem de estagiar seis meses em madeira e três meses em garrafa. Como é típico dos vinhos do litoral, o Vinho de Colares não é muito alcoólico, tendo por graduação mínima obrigatória 10 graus.
O registo mais antigo sobre o cultivo da vinha na área de Colares data de 1154 e consta da Carta de Foral de Sintra. Nova referência surge em 1255 na doação feita por Dom Afonso III do reguengo de Colares a Pedro Miguel e sua mulher Maria Estêvão. Até ao século XVIII as fontes são omissas em relação às castas plantadas na actual demarcação. É a partir dessa centúria que começam os relatos sobre o ramisco. Contudo, se não há documentação que ateste a presença desta uva tinta em período anterior, também não há que a desminta.
O reconhecimento, por parte da Unesco, de Sintra como Património da Humanidade, em 1995, veio dar um novo alento ao Vinho de Colares. Em 1999, a Fundação Oriente, presidida por Carlos Monjardino, adquiriu nove hectares na demarcação de Colares, que transferiu para uma empresa criada para o efeito (Sociedade das Vinhas da Areia), que comprou a marca tradicional MJC.
A empresa iniciou uma reconversão da vinha, já existente no local e que se destinava ao fabrico de aguardente. Um dos problemas foi a obtenção de bacelos de ramisco, que, devido à sua raridade, levou cerca de três anos até à satisfação das necessidades.
O surgimento desta empresa trouxe ainda inovação à região. Tradicionalmente, as cepas, mesmo as situadas no chão de areia, têm as raízes fincadas na camada argilosa. Porém, a parcela de terreno onde se situa a vinha desta empresa conta com uma profunda duna, pelo que, pela primeira vez, foi introduzida a rega em Colares. Por outro lado, a maior distância face ao mar levou a que as plantas não sejam conduzidas de forma rasteira, mas de forma mais ergonómica e de exploração mais económica. Por este facto, as folhas podem apanhar mais Sol, aumentando o teor alcoólico e arredondando os taninos. Os taninos mais redondos permitem que o MJC seja bebido com menos idade do que os seus congéneres. O trabalho de campo ficou a cargo de João Goulão e o enológico de Paolo Nigra.
O surgimento desta empresa, que ocupa uma área considerável da demarcação, vem dar uma forte esperança, até porque não hesitou em «desperdiçar» algumas safras por não as considerar dignas da qualidade exigível ao Vinho de Colares. Esta postura de exigência, aliada ao facto de a detentora do capital ser a Fundação Oriente, vocacionada para investimentos culturais, faz dar um suspiro aliviado. Porém, será injusto não referir também o esforço paralelo que a Adega Regional de Colares tem realizado para recuperar a fama e o estatuto deste vinho, nomeadamente a selecção de clones dos melhores bacelos e a melhoria dos modos de produção. Espero que estes meus dois suspiros tenham razões de ser e o Vinho de Colares possa recuperar da sombra.
Consta como certo que a gastronomia duma região deve ser acompanhada pelos vinhos da mesma proveniência. Se assim é, o oposto deve também ser verdadeiro. É claro que, sendo o Vinho de Colares famoso e batido as rotas comerciais, haverá muitas iguarias com que casará bem, mas quero apenas agora alguns da tradição saloia. Numa pesquisa rápida encontrei para o tinto: carne de porco à Mercês, leitão de Negrais, vitela à sintrense e cabrito assado à padeiro. Na investigação para o branco: caldeirada de abrótea e caboz, migas à pescador, escalada de lapas, mexilhões na chapa e mexilhões de cebolada. A doçaria de Sintra tem fama na região de Lisboa, mas não me parece que vá bem com nenhum dos Colares.
Eça de Queiroz foi repetente nas referências ao Vinho de Colares na sua obra, o que permite deduzir que o escritor era um aficionado. E a propósito de pratos que apetece ligar com o Vinho de Colares junto o meu paladar ao de Eça de Queiroz, pelo menos a confiar na descrição que Jaime Batalha Reis faz dos repastos que partilhou com ele: bacalhau e bifes, pois vão muito bem com o dito tinto.
Quando novo, o tinto é taninoso e adstringente, o que alegadamente terá levado Eça de Queiroz uma tirada mordaz: «Este vinho é Colares novo ou está estragado». O passar dos anos confere-lhe um aroma agradável e um toque aveludado na boca. O meu último tinto era de 1974 e o derradeiro branco de 1994.

Nota: Fotografia duma vindima em Colares, retirada do sítio de Luciano Canelas.

Tapada da Tojeira - coisas da oliveira

Nem só de artes vive o homem. Nem só da terra se alimenta a alma. Em Vila Velha de Ródão encontra-se uma explorações agrícolas mais interessantes do país: a Tapada da Tojeira. Além de local de lavoura, aquela propriedade é sede do Centro de Estudos de Novas Tendências Artísticas. A Beira Baixa é terra de azeitona e de azeite e o da Tapada da Tojeira faz-se com as variedades cordovil e galega (maioritária). Na propriedade pratica-se o modo de produção biológico, ou seja não há recurso a químicos de sítese. Embora certificado como produto de agricultura biológica, o azeite da Tapada da Tojeira não está certificado com a Denominação de Origem Protegida. Todavia, trata-se dum azeite de fina qualidade, embora o pedido já tenha sido formulado. Outro dos produtos é a azeitona em conserva. O modo é o tradicional da Beira Baixa e as variedades de azeitona as mesmas das do azeite. Mas a razão deste texto não é o azeite nem as azeitonas, mas uma preciosidade guardada em frasquinhos: pasta de azeitonas. Em Portugal desconheço grande tradição deste género alimentar, apesar da presença, de Norte a Sul, das oliveiras. Tanto assim é que a Tapada da Tojeira foi a primeira casa a produzir pasta de azeitona (cordovil e galega) e a pô-la no mercado e, tanto quanto sei, é a única. O processo é todo artesanal e consiste em azeitonas esmagadas às quais se adicionam orégãos e azeite.

Comida de Santo

Calçada Eng. Miguel Pais, 39 - Lisboa (ao Príncipe Real)
Telefone: 21 396 33 39

Há uns anos valentes que não me sentava à mesa do Comida de Santo. Foi bom voltar e perceber que a casa está na mesma e com clientela, é sempre bom sinal. Por lá já comi diversas vezes e fiquei sempre satisfeito, mas desta vez deixo apenas a referência dos pratos provados nesta visita. Todavia, fica a ligação para o sítio na net, onde se pode consultar o menu. Na minha última estada marchou uma apalada feijoada à brasileira - onde só lhe aponto como desgosto maior a linguiça, que estava demasiado cozinha e poderia ser de melhor qualidade - e um picadinho à mineira justo no paladar. Para sobremesa veio apenas um pudim de aipim (mandioca, leite de coco e leite condensado), que me tirou do sério: queria mais! A lista de vinhos não é variada e poderia contar com alguma oferta de vinhos brasileiros. Infelizmente conta apenas com o Rio Sol. O serviço é simpático, atento e competente. Um lugar sossegado que merece uma visita.

Rio Sol 2004

Andava curioso para provar a obra que a Dão Sul anda a fazer no Brasil e outro dia dei com ela à venda num restaurante de Lisboa e a um preço bem simpático (12 euros). Este é o primeiro tinto (por enquanto único) a ser produzido à latitude de 8º Sul.Por mais preconceitos que pudesse ter na cabeça, sabia, à partida, que a gente da Dão Sul não brinca em serviço: nem com com a qualidade nem com o investimento. Bebi e gostei bastante. É um vinho de perfil internacional, muito redondo na boca, muito fácil. As uvas do lote são cabernet sauvignon e syrah. Todo ele é fruta vermelha, sem a marca implicativa do pimento ou do pimentão.

Região: Vale do São Francisco (Brasil)
Produtor: Vitícola Santa Maria
Teor alcoólico: 12,5%
Nota: 6/10

quinta-feira, fevereiro 01, 2007

O que se põe na mesa

O cerimonial à mesa evoluiu com o passar dos tempos. Hoje estamos sentados frente aos pratos de forma distinta da que estavam os nossos antepassados.
Há hábitos portugueses, manias espanholas, tradições alemãs, inovações americanas, informalismos brasileiros... Mas de forma genérica, actualmente nas sociedades ocidentais está-se de forma idêntica nos repastos. O cerimonial é mais ou menos o menos. Pode ser mais ou menos formal, há diferentes protocolos, diveregentes formas de sentar, mas ninguém se estranha.
Contudo, a humanidade não se alimenta toda da mesma forma. Nem mesmo nós, no Ocidente, tivemos sempre os mesmos cuidados, aprumos e rotinas. Quotidianamente dizemos pôr a mesa. Porém, o objecto de mobiliário está já posto no sítio, é um mono, mais ou menos móvel, mais ou menos compacto. A expressão pôr a mesa resulta de durante muitos anos não existir nas casas uma divisão dedicada à alimentação. Os repastos aconteciam onde apetecia estar ou onde convinha e aí se punha a mesa. Agora, a expressão significa colocar uma toalha e distribuir as alfaias alimentares sobre o pano.
Na Idade Média era uma honra servir o Rei. À mesa, a carne era cortada e servida pelo trinchante-mor. Não era um criado, mas um importante e influente fidalgo. Se trinchante é trinchante, já mordomo tinha outro significado daquele que tem hoje.
Para não alongar as palavras ou fazer deste texto um tratado sobre acepipes intelectuais, aproximo-me da actualidade. Constato que num espaço de tempo curto, em vinte anos, as modificações de comportamento na restauração.
Em primeiro lugar, quero referir que é óbvio que hoje há melhor restauração, gente mais bem preparada na cozinha e nas salas, do que nas décadas de 80 e 90. O panorama melhorou bastante em Portugal. Portanto, não vou fazer um discurso da miséria. Porém, vou chamar à atenção para alguns sinais de infelicidade que também se fazem sentir.
Lembro-me de as refeições virem em travessas e serem servidas pelos empregados, mesmo em casas modestas. Depois de virem apenas em travessas. Posteriormente, a regra passou a ser servi-las já empratadas. Agora há muito o costume de apresentar uma travessa em vez dum prato.
Isto é bom ou é mau? O serviço à mesa por um empregado tem custos, pelo que compreendo que casas mais modestas tenham deixado de prestar esse serviço, libertando mão-de-obra, que, assim, presta mais atenção a outras mesas. O resultado é economia de braços, ou seja, menos custos. O mesmo se pode aplicar à apresentação das travessas nas mesas, pois é loiça suplementar que se tem de lavar, o que se traduz em gastos de água, detergente e energia. Portanto, admite-se em casas mais económicas. O que não é, de todo, aceitável é servirem os clientes em travessas. É uma questão de educação e de respeito.
O que leva a pensar a um comerciante que um cliente deve comer numa travessa? Faço mais cerimónia, em minha casa, com amigos que trato por tu... Não se admite que alguém a quem pago por um serviço e a quem se exije tratamento por senhor ponha uma travessa à frente.
A talhe de foice: entrei outro dia numa loja de objectos de hotelaria e cozinha em busca de copos e pratos. Às tantas, disparou-me a senhora:
- Tem aqui estes, agora usam-se muito.
Eram travessas, pelo que lhe respondi que não precisava de tais objectos, mas sim de pratos. Ela repetiu-me que têm muita saída. Pois sim, pois sim. Será que já ninguém diferencia um prato duma travessa? Um é redondo o outro é rectangular ou oval. É simples! É uma questão de geometria (a tal coisa da educação). Qualquer dia, nos restaurantes deste país, ainda levam à mesa tachos, panelas e caçarolas... tirando aqueles casos em que a tradição assim o dita, mas em que os ditos são «bonitinhos», feitos para se apresentarem aos convivas.
Uma outra baixaria de algumas casas é a maldita malga da sopa em alumínio. Bem sei que só acontece em estabelecimentos populares, mas quando se trabalha e se tem de almoçar fora não se pode dispender tempo nem dinheiro noutros locais que não esses. Mas ser popular não significa ser-se mau nem mal educado nem servir mal. Por isso, não se compreende por que raio alguém possa pensar que os seus clientes são reclusos dum estabelecimento prisional ou meninos a alimentarem-se na cantina escolar.
Cada um tem a sua vida e faz dela o que quiser e entender. Por mim digo apenas que me recuso a comer sopa em malgas de alumínio e refeições em travessas. A menos que, por educação e respeito por quem me convide, o tenha de fazer.

A importância dos vasos

Não é novidade para os amigos enófilos a importância dos copos, facto que pode transformar a percepção do aroma dum vinho e até o seu embate na boca. Hoje tive uma experiência semelhante que me apetece partilhar com os frequentadores do blogue.
Aqui no botequim onde passo umas horas largas há uma máquina de café. Os grãos são de boa qualidade, da marca Lavazza, e dão uma bebida desafiadora, embora não seja o melhor lote dessa companhia. O problema é que o serviço contratado prevê apenas o fornecimento de copinhos de plástico. Paciência, os 30 cêntimos desculpam o incómodo.
Contudo, os copinhos acabaram e ficou-se sedento de bicas ou cimbalinos ou italianas ou expressos ou o que lhe quiserem chamar. Uma tristeza! Foi então que alguém, que já por cá anda há uns anos, se lembrou que houve, em tempos, uma outra máquina, colocada ao abrigo dum contrato com outra marca de café, cujo contrato forneceu chávenas de loiça. As ditas têm estado fora de uso para evitar o trabalho de as lavar...
A necessidade levou a que se as chávenas de loiça voltassem a uso e revelação: o belo café da Lavazza alterou-se. Ficou melhor!
Diz-me como comes (ou bebes) e dir-te-ei quem és!

O mito e a resposta

O mito: É nas tascas que se come bem!
A resposta: Pelo mesmo racicínio, a verdadeira literatura é a dos iletrados.