O Vinho de Colares está-me na memória. Não que o tenha bebido muito, mas porque foi dos primeiros que me deixaram beber, dos primeiros a impressionar-me e dos que mais me impressionaram.
É um facto que a juventude é impressionável, mas não fui o primeiro a fascinar-me com o Vinho de Colares nem o único. Antes de mim e a par, outras pessoas têm um fascínio e uma nostalgia. A fama e a grandiosidade levaram a que o importante professor Ferreira Lapa, referência ainda hoje no campo da vitivinicultura, a afirmar: «é um vinho que possui todos os requisitos e qualidades dos vinhos tintos de Medoc, é o vinho mais francês que possuímos». Eça de Queiroz foi outro apreciador destes néctares. Contudo, vivo quase no tempo errado para o beber. Quase, porque há ainda disponível no mercado umas tantas garrafas de anos apontados como anteriores à decadência da região. Quase, porque julgo haver motivos de esperança.
A gloria de Colares sempre foi o tinto, muito mais do que o branco. A dor que causa e se sente é a escassez da casta ramisco, visto que a geradora do branco (malvasia de Colares) não ser a mais louvada. A decadência da vinha em Colares liga-se à proximidade de Lisboa, ao aumento de importância económica do turismo, com incremento das casas de campo, das vivendas burguesas e das residênciais de Verão.
A Lisboa elegante e burguesa do século XIX já gostava de ir a banhos para a praia e refrescar-se na aragem da serra de Sintra. A moda da praia das Maçãs levou à construção de uma linha de carro-eléctrico, as casas de fim-de-semana foram somando-se. A beleza da rusticidade saloia, os bons ares da floresta e da serrania e os banhos de mares aumentaram os aglomerados urbanos de Colares, das Azenhas do Mar e das pequenas aldeias limítrofes. Hoje, as antigas hortas, pomares e vinhas nos areais vão rareando e algumas propriedades estão abandonadas ou desmazeladas.
Há duzentos anos era tudo muito diferente. O século XIX foi o tempo do Vinho de Colares e por diversas razões: uma delas foi a filoxera, outra a da moda e o reconhecimento da qualidade. A praga do pulgão que chegou a Portugal em 1864/5 e dizimou as vinhas europeias não fez estragos em Colares, antes pelo contrário. O facto de as vinhas estarem plantadas em solos arenosos evitou o ataque do insecto. Por outro lado, a escassez de vinho permitiu a valorização dos preços dos lavradores que o tinham e abriu espaço para que estes vinhos ganhassem fama. É nessa centúria que é criada, por Gomes da Silva, uma das mais emblemáticas casas: que viria a chamar-se de Viúva Gomes & Filhos, fundada em 1808.
O oceâno Atlântico faz-se sentir grandemente na demarcação de Colares, através dos fortes ventos marítimos portadores de salinidade. As parcelas de terreno são de pequena dimensão e encontram-se muitas vezes cultivadas com vinhas e macieiras rasteiras, assim plantadas para melhor enfrentarem a ventania. Para protecção adicional são colocadas paliçadas de cana.
Pelo facto das plantas estarem na sua maioria em solo arenoso e terem ficado imunes à filoxera ainda hoje as cepas se encontram em chamado pé-franco, ou seja não estão enxertadas em vides americanas, resistentes ao pulgão.
Nos tempos áureos do século XIX, a área circundante à vila de Colares plantada com vinha pode ter chegado aos mil hectares. A região demarcada de hoje representa 22 hectares, dos quais nem todos estão explorados. Refira-se que aqui existem vários conceitos: área de vinha próxima à vila, demarcação e área de chão de areia. Todavia, de mil para 22 hectares há uma brutal diferença.
Para se ver o estado a que se chegou refiram-se outros números. Tanto quanto sei, actualmente há apenas dois produtores de Vinho de Colares. A jovem Sociedade das Vinhas de Areia e a veterana Adega Regional de Colares, que conta com cerca de meia centena de associados e vende uma boa parte da sua safra a duas empresas engarrafadoras (Viúva Gomes & Filhos e António Bernardino Paulo da Silva).
Num país que se diz titular da mais antiga demarcação do mundo (Douro), esta não é muito idosa, embora seja das que mais cedo foi reconhecida. No entanto, não tem um século. A região só foi demarcada em 1908 por decreto de Dom Manuel II e abrange as freguesias de Colares, São João das Lampas e São Martinho (todas no concelho de Sintra).
A região de Colares divide-se em duas subzonas geológicas: uma arenosa e outra argilo-calcária (chão rijo). Porém, apenas os vinhos provenientes maioritariamente de solo arenoso podem ostentar a denominação de Colares.
O Vinho de Colares tanto pode ser tinto como branco, sendo que o primeiro tem de conter uma percentagem mínima de 80 por cento da casta ramisco e o segundo pelo menos 80 por cento da casta malvasia. Tanto o tinto como o branco pode conter até 10 por cento de vinho proveniente de parcelas de chão rijo. No chão de areia podem ainda ser cultivadas as castas tintas castelão, molar e parreira matias, e as brancas arinto, galego dourado e jampal. Nestas áreas argilo-calcárias é permitido o cultivo das castas tintas castelão, molar, parreira matias e tinta-miúda, e as brancas arinto, galego dourado, fernão pires, jampal e vital. O Colares tinto está sujeito a um estágio mínimo obrigatório de 18 meses em madeira e de três meses em garrafa. O branco tem de estagiar seis meses em madeira e três meses em garrafa. Como é típico dos vinhos do litoral, o Vinho de Colares não é muito alcoólico, tendo por graduação mínima obrigatória 10 graus.
O registo mais antigo sobre o cultivo da vinha na área de Colares data de 1154 e consta da Carta de Foral de Sintra. Nova referência surge em 1255 na doação feita por Dom Afonso III do reguengo de Colares a Pedro Miguel e sua mulher Maria Estêvão. Até ao século XVIII as fontes são omissas em relação às castas plantadas na actual demarcação. É a partir dessa centúria que começam os relatos sobre o ramisco. Contudo, se não há documentação que ateste a presença desta uva tinta em período anterior, também não há que a desminta.
O reconhecimento, por parte da Unesco, de Sintra como Património da Humanidade, em 1995, veio dar um novo alento ao Vinho de Colares. Em 1999, a Fundação Oriente, presidida por Carlos Monjardino, adquiriu nove hectares na demarcação de Colares, que transferiu para uma empresa criada para o efeito (Sociedade das Vinhas da Areia), que comprou a marca tradicional MJC.
A empresa iniciou uma reconversão da vinha, já existente no local e que se destinava ao fabrico de aguardente. Um dos problemas foi a obtenção de bacelos de ramisco, que, devido à sua raridade, levou cerca de três anos até à satisfação das necessidades.
O surgimento desta empresa trouxe ainda inovação à região. Tradicionalmente, as cepas, mesmo as situadas no chão de areia, têm as raízes fincadas na camada argilosa. Porém, a parcela de terreno onde se situa a vinha desta empresa conta com uma profunda duna, pelo que, pela primeira vez, foi introduzida a rega em Colares. Por outro lado, a maior distância face ao mar levou a que as plantas não sejam conduzidas de forma rasteira, mas de forma mais ergonómica e de exploração mais económica. Por este facto, as folhas podem apanhar mais Sol, aumentando o teor alcoólico e arredondando os taninos. Os taninos mais redondos permitem que o MJC seja bebido com menos idade do que os seus congéneres. O trabalho de campo ficou a cargo de João Goulão e o enológico de Paolo Nigra.
O surgimento desta empresa, que ocupa uma área considerável da demarcação, vem dar uma forte esperança, até porque não hesitou em «desperdiçar» algumas safras por não as considerar dignas da qualidade exigível ao Vinho de Colares. Esta postura de exigência, aliada ao facto de a detentora do capital ser a Fundação Oriente, vocacionada para investimentos culturais, faz dar um suspiro aliviado. Porém, será injusto não referir também o esforço paralelo que a Adega Regional de Colares tem realizado para recuperar a fama e o estatuto deste vinho, nomeadamente a selecção de clones dos melhores bacelos e a melhoria dos modos de produção. Espero que estes meus dois suspiros tenham razões de ser e o Vinho de Colares possa recuperar da sombra.
Consta como certo que a gastronomia duma região deve ser acompanhada pelos vinhos da mesma proveniência. Se assim é, o oposto deve também ser verdadeiro. É claro que, sendo o Vinho de Colares famoso e batido as rotas comerciais, haverá muitas iguarias com que casará bem, mas quero apenas agora alguns da tradição saloia. Numa pesquisa rápida encontrei para o tinto: carne de porco à Mercês, leitão de Negrais, vitela à sintrense e cabrito assado à padeiro. Na investigação para o branco: caldeirada de abrótea e caboz, migas à pescador, escalada de lapas, mexilhões na chapa e mexilhões de cebolada. A doçaria de Sintra tem fama na região de Lisboa, mas não me parece que vá bem com nenhum dos Colares.
Eça de Queiroz foi repetente nas referências ao Vinho de Colares na sua obra, o que permite deduzir que o escritor era um aficionado. E a propósito de pratos que apetece ligar com o Vinho de Colares junto o meu paladar ao de Eça de Queiroz, pelo menos a confiar na descrição que Jaime Batalha Reis faz dos repastos que partilhou com ele: bacalhau e bifes, pois vão muito bem com o dito tinto.
Quando novo, o tinto é taninoso e adstringente, o que alegadamente terá levado Eça de Queiroz uma tirada mordaz: «Este vinho é Colares novo ou está estragado». O passar dos anos confere-lhe um aroma agradável e um toque aveludado na boca. O meu último tinto era de 1974 e o derradeiro branco de 1994.
Nota: Fotografia duma vindima em Colares, retirada do sítio de Luciano Canelas.
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