O Tejo é hoje quase só um rio. O meu pai, que nasceu em 1924, lembra-se de o ver cheio de vida, com fragatas e faluas, muita gente nos cais e golfinhos no estuário. Eu só me lembro de aprender nele as bandeiras que os navios traziam. Hoje são poucos os vasos, o porto está mortiço.
A cidade tornou-se metrópole e abraçou os arrabaldes. Os locais onde o meu pai ía de passeio são hoje subúrbios. Entre o tempo das hortas, olivais e vinhas até já houve um outro tempo, momento de fábricas e de operariado. Mas isso são contas que agora não importam.
No vai-e-vem desse Tejo de outrora abastecia-se a capital: o sal de Alcochete, os cereais do Alentejo, o azeite do Sul e, é claro, o vinho. Vinho? Sim, vinho. Não apenas o precioso e fino Moscatel de Setúbal, mas também o de pasto de Palmela. E não apenas esses.
Antes de ir onde quero, passo revista à actualidade: A denominação de origem controlada de Setúbal abrange os concelhos de Setúbal e de Palmela e parte da freguesia do Castelo, no concelho de Sesimbra. A demarcação de Palmela é quase coincidente, mas um pouco mais vasta, alargando-se ao concelho do Montijo. Depois há os vinhos regionais Terras do Sado, que abrangem todo o distrito de Setúbal (incluíndo os seus quatro concelhos alentejanos).
Porém, se é óbvio hoje o cultivo da vinha em Alcácer do Sal, por exemplo, não é lúcido afirmar-se que exista vinha em Almada ou no Barreiro, devido ao avanço da metrópole. Contudo, a vinha teve um peso significativo na actividade económica das povoações de Entre o Tejo e Sado. Um facto que se traduz pela presença de cachos nos brasões dos concelhos de Alcochete, do Barreiro e da Moita, e nos das freguesias de Caparica (Almada), Charneca da Caparica (Almada), Lavradio (Barreiro), Santo António da Charneca (Barreiro), Pegões (Montijo), Santo Isidro de Pegões (Montijo) e Paio Pires (Seixal). Além destes ainda há o de Samouco (Alcochete) que tem uma pipa.
No entanto, o reconhecimento da qualidade dos vinhos da margem esquerda do Tejo tardou a acontecer. A menos que se considere madrugadora o estabelecimento da demarcação do Setúbal que aconteceu em 1907. Já a denominação Palmela só se verificou em 1997. Ainda assim, Lisboa bebeu muito vinho proveniente da outra banda do rio. Um deles tinha uma fama particular: o Bastardinho.
Este vinho era proveniente de uma área vitícola que se estendia de Alcochete até ao Barreiro, sendo communente designado por vinho do Lavradio; outras fontes referem-no como típico em toda a península de Setúbal. Este vinho era proveniente, porque ao que consta dele já só resta o que a firma José Maria da Fonseca dispõe em Azeitão. A empresa refere que a última vinha foi arrancada (até me dói escrever isto) em 1983.
Contudo, constou-me que um indivíduo se dedica todos os anos a bater de porta em porta dos quintais a recolher as poucas uvas que ainda ousam nascer na orla ribeirinha do Tejo e faz o que lhe compete de vinho. Quem será esta personagem?
Tanto quanto sei, a empresa José Maria da Fonseca além da reserva em barril, que volta e meia engarrafa umas dúzias de frasquinhos, tem tenções de plantar uns tantos pés desta cepa. Porém, a «coisa» levará 30 anos, para dar vinho. Um suplício, portanto.
É um vinho ao qual é adicionada aguardente vínica e que estagia em barricas usadas. As descrições coincidem nos frutos secos e figos, havendo ainda referências a especiarias e menta. Eu, confesso, que nunca o provei. Sei onde se vende e um dia ainda perco a cabeça e o amor a uns tantos euros.
Nota: O brasão do Lavradio demonstra a importância da vinha na economia da Terra. O Bastardinho era também conhecido por Vinho do Lavradio.
5 comentários:
João, o mais impressionante é que eu conheço o Lavradio. Durante muitos anos vivi no Barreiro e "aquilo" sempre esteve tapado de cimento.
É de facto um vinho nascido a partir de vinhas que já não existem.
É um terroir!...
Nasci no Lavradio há 59 anos.
Contava o meu avô que um agricultor tinha um boi chamado Dio e quando ela lavrava a terra, dizia "lavra Dio",Lavra-dio daí o nome da terra.
O Cândido Manuel Pereira que tem o mesmo nome do avô é o individuo que o João descreve que anda a recolher a uva Bastarda para fazer o vinho Bastardinho, tal e qual como seu avô fazia.
O Pingus Vinicius, nunca viu vinhas no Lavradio, nem Sal nas Salinas como eu vi, até aos meus 15 anos.
Depois a CUF e a UFA taparam "aquilo" com cimento.
Caro Luís, muito obrigado pelo seu comentário. Por acaso não tem o contacto de Cândido Manuel Pereira? Pode enviar-mo par o meu email?
muito obrigado e um abraço
Boas. Eu vivi no Lavradio durante 31 anos. Desde miúdo que conheço o nome Bastardinho. Já bebi desse vinho, inclusive o meu pai ainda possui uma ou duas garrafas, que comprou há relativamente pouco tempo. Creio que ainda se podem adquirir! Quem o produz julgo ser o tal neto do Cãndido M. Pereira, como foi dito anteriormente.
Mais importante que o beber, seria não o deixar morrer, parece-me. Será que o amigo João estará interessado nisso ou apenas em o ter à mesa?
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