quarta-feira, junho 20, 2007

Tokay e provai... e não querereis outra coisa!

Até à divulgação do Vinho do Porto, o Tokay foi o grande vinho da realeza. Este néctar branco pode ter sido destronado, mas não perdeu fama nem prestígio. Aliás, há mais do que um rei a reinar na terra!













Uma garrafa de vinho Tokay gerou uma guerra. Por ele, os turcos invadiram a Europa e cercaram Viena... Isto segundo a versão do aventureiro Barão de Münchausen.
O Grande Turco geria o seu império em paz, quando recebeu a visita do aristocrata germânico e a quem serviu o seu melhor Tokay. Mas a reacção ficou-se por um «não está mal». O espanto e a raiva do sultão encontraram consolo numa aposta: Uma garrafa dum Tokay superior, no prazo de uma hora, ou a cabeça do barão, em troca todo o tesouro que um só homem pudesse carregar. Münchausen, um James Bond do final do século XVII, tinha por companheiros, entre outros, os homens mais veloz e mais forte do mundo. Adiante: O tesouro foi todo levado, deixando o perdedor na penúria, ofendido na alma e furibundo, instigando-o a perseguir o seu «007», a entrar pela Europa e pondo-a a ferro e fogo, chegando às portas de Viena.
Este episódio do impagável personagem literário de Rudolph Erich Raspe só aconteceu no cinema, mas traduz a alma do herói fantasioso (que se opõe ao racionalismo do «século das luzes») e a aura mágica e divina de um vinho que nasce diferente... na Hungria e na Eslováquia.



















Verdade e rivalidade
O Tokay, tal como é hoje conhecido, data de meados do século XVI, já os turcos andavam em patifarias pela Europa. A produção não prosperou durante a ocupação otomana, mas muitas das adegas foram criadas nessa época. Em 1683, o rei João III da Polónia salvou Viena do cerco e daí em diante dá-se o recuo das tropas turcas e a expansão da fama do Tokay.
Os romanos introduziram a vinha na Panónia e os eslavos deram-lhe continuidade. A invasão dos tártaros deu cabo das vides, mas estas voltaram com os italianos chamados, por Bela IV, a colonizar a região entre os rios Tisa e Bodrog.
Consta que em 1617 a vindima foi atrasada devido à previsão dum ataque turco, o que levou ao surgimento da botrytis cinerea (podridão nobre), que faz as uvas murchar, a película ficar mais macia e adocica o sabor. Devido a esta lenda, o Tokay reclama ser o mais antigo «colheita tardia», reivindicado também pelo vinho alemão Rheingau (120 anos mais tarde).
Ainda que a data verídica seja outra, talvez o Tokay seja o primeiro «colheita tardia». O registo mais antigo sobre a elaboração do Tokay data de 1630 e em 1655 surgiu o primeiro decreto a regulamentar a vindima, obrigando a escolha, um a um, dos bagos afectados pela podridão nobre, a que chamam «aszú».
Em 1737, um decreto estabeleceu os limites vinhateiros do Tokay e, em 1772, foi divulgada o primeiro sistema de classificação de parcelas do mundo. Ora, isto faz com que hungaros e eslovacos reivindiquem a mais antiga região demarcada do mundo. Isto entra em conflito com a certeza portuguesa. A instituição da Real Companhia das Vinhas do Alto Douro, por ordem do marquês de Pombal, aconteceu em 1756, traduziu-se no terreno, com marcos a assinalar os limites do Douro vinhateiro, coisa que só muito mais tarde aconteceu na Hungria.
As convulsões desencadeadas com a Primeira Guerra Mundial conduziram ao divórcio austro-húngaro, ao surgimento de novos Estados e à divisão da região do Tokay em duas, ficando, contudo, quase toda na Hungria.
A filoxera fez estragos no século XIX e as complicações continuaram na centúria seguinte, com duas guerras mundiais e regimes comunistas na Hungria e Checoslováquia. O Tokay só ressurgiu após o fim da Guerra Fria. Porém, o degelo pôs a nu um problema: o que fazer com um produto valorizado, mas dividido por dois países? A Hungria conseguiu o reconhecimento formal, enquanto a Eslováquia protestava. As negociações de adesão à União Europeia indicaram a solução. Um problema que persiste é o das designações abusivas: França (Tokay da Alsácia), Itália (Tocai), Eslovénia, Austrália e Califórnia.
A queda dos regimes comunistas atraiu o investimento estrangeiro, estimulou o empenho, recuperou a qualidade, o encanto e o prestígio. Resultado: o preço disparou. Para se ter uma ideia, uma garrafa (meio litro) de boa qualidade («aszú 5 puttonyos») custa em Lisboa (coisa difícil de encontrar) 35 euros... sem especulação face a lojas no estrangeiro.

Três copitos
O Tokay faz-se com uvas brancas e tem tonalidades preciosas, entre o ouro e o âmbar. O seu sabor é, por natureza, complexo. Nas produções mais tradicionais, a boca sente maçã caramelizada, caramelo, passas, algum mineral e há quem diga a «alcatrão» (Cruzes! Credo! Haja respeito e pudor!). As novas tecnologias permitem experiências e modas, pelo que os mais audazes conseguem dar a provar tangerina, pêssego, damasco, manga, ananás e notas florais.
Quem leia estas linhas pode pensar que se trata dum vinho xaroposo e pastoso, mas engana-se! É algo entre o amargo e o doce (como aquela canção de Paulo de Carvalho com poema de Ary dos Santos) e tem boa escorrência. Na mesa vai bem com foi-gras e patês, frutos secos, passas, fruta cristalizada, pastelaria e bolo-rei. Ah! E serve-se frio. Muito frio, entre os quatro e os seis graus.
Na verdade, existem três tipos de Tokay. O «szamorodni» («tal como vem») não é um «colheita tardia», não tem a mística dos seus irmãos, mas serve-lhes de base. Depois há os «aszú», escalonados em cinco categorias, e o «eszenzia», que entra numa competição à parte.
Na base está o «aszú 3 puttonyos», que indica que a 80 litros foram adicionadas três cestas de vindimas (20 quilos ou litros) com uvas com fungo, contendo até 9% de açúcar residual. Seguem-se os «aszú 4 puttonyos» (até 12%), «aszú 5 puttonyos» (até 15%), «aszú 6 puttonyos» (até 18%) e o «aszú eszenzia» (mais de 18%).
A «tal» bebida mágica dos reis designa-se, simplesmente, por «eszenzia» e o açúcar residual pode chegar a 70%. A fermentação alcoólica é lentíssima, a longevidade quase eterna e o sabor... desconhecido por seis mil milhões de pessoas... talvez até mais.





















Aforismos Tokantes
Húngaros e eslovacos repetem uma pomposa frase sobre o Tokay saída da boca de Luís XIV de França: «é o rei dos vinhos e o vinho dos reis»! Há, aliás, uma forte relação com a realeza. Houve tempos em que os «eszenzia» (a que atribuíram poderes curativos) eram exclusivo dos monarcas magiares e, mais tarde, dos Habsburgos. Pedro I da Rússia violou as suas próprias leis e importou-o, armazenando-o nas caves do seu palácio de Sampetersburgo. Catarina, a Grande, que lhe sucedeu, não prescindiu da especialidade.
Está provado que alguns dos que saborearam Tokay proferiram algumas das melhores tiradas da humanidade. O mordomo da corte prussiana tranquilizou Frederico II: «Continuai bebendo Tokay, Majestade. As duas primeiras pessoas foram expulsas do Paraíso por comerem, não por beberem».
Por fim – e porque uma frase em latim dá sempre um toque letrado a quem a escreve e seriedade ao que se lê –, um aforismo do papa Bento XIV quando o provou, oferecido pela imperatriz Maria Teresa de Áustria: «Benedicta sit terra, quae te germinavit. Benedicta sit mulier, quae te misit. Benedictus sum, qui te bibo»!*

*(«Bendita a terra em que germinaste. Bendita a mulher que te trouxe.Bendito sou eu que te bebo»)


Nota: Este texto foi, em versão um pouco mais alargada, publicado pela primeira vez na revista Fora de Série (Diário Económico e Semanário Económico) em Outubro de 2005.

Sem comentários: