quinta-feira, junho 21, 2007

Dois vinhos, um só vale

Se o homem consegue milagres, um deles fica em Portugal. O Douro era indomável, feito de cascatas, rápidos e outras traições à navegação. Os portugueses fizeram dele estrada de comércio e domesticaram-no. A íngreme moldura serrana do rio foi esculpida para que as encostas se tornassem produtivas.
A força deste milagre chama-se vinho do Porto. Foi a riqueza que gera que fez com que as encostas fossem escavadas em socalcos... com os primeiros patamares a surgirem no final do século XVIII.
A região duriense foi a primeira região do mundo a ser demarcada . Mas o que importa mesmo são os sabores e os aromas ímpares.
Os ingleses apreciaram este vinho desde que o provaram e por muitos anos foram os seus grandes consumidores, e os homens do Douro fizeram-no ao gosto dos fregueses. Mais tarde, o Brasil tornou-se noutro grande mercado. Hoje este vinho é universal e exportado para todo o mundo.
O vinho do Porto não foi sempre igual... até ao ano em que uma colheita se tornou numa referência. Aconteceu em 1820, segundo João Nicolau de Almeida, responsável da casa Ramos Pinto.
Por ser um produto nascido para a exportação, o vinho do Porto é quase desconhecido dos portugueses, que consomem, sobretudo, os produtos de menor qualidade.
O vinho do Porto tem uma elevada percentagem de álcool. O limite mínimo para os brancos é 16,5%, enquanto para os tintos é de 19%. Os brancos dividem-se em cinco categorias de doçura, do muito-doce ao extra-seco.
Os vinhos do Porto correntes são resultado da mistura de diversas colheitas, são os chamados vinhos de lote: é o caso dos brancos, dos ruby e dos tawnies. Os ruby são avermelhados, porque envelhecem menos tempo em madeira do que os tawnies, que têm uma cor aloirada. Alguns tawnies podem indicar 10, 20, 30 ou 40 anos, ou seja a idade média dos vinhos que compõe em seu lote.
Os melhores vinhos do Porto passam mais anos a envelhecer e são provenientes de uma só vindima, daí designarem-se por vintage, que significa colheita em inglês. Dentro dos vintage existem os garrafeira, que envelhecem em vidro, e os LBV, ou late bottle vintage, colheita engarrafada tardiamente. Quando a produção é originária de uma só quinta, esta pode vir referida no rótulo.
Difícil? O vinho do Porto é assim mesmo, já no século XIX se dizia que há tantos tipos de vinho do Porto quanto os tons das fitas à venda num retroseiro...
O vinho do Porto tem associada uma imagem de glamour, é o que emana do prestígio das suas caves e do charme das suas quintas fidalgas. Mas a realidade é diferente...
A vinha total ocupa quase 39 mil hectares e o grosso da produção vem de pequenas parcelas... a propriedade média tem pouco mais de um hectar. A produtividade por hectar é de 30 hectolitros ou 4100 quilos.
O Douro vinhateiro espalha-se por quatro distritos e divide-se nas subregiões do Baixo Corgo, Cima Corgo e Douro Superior. É uma área variada, com diferentes exposições solares e altitudes que vão dos 60 aos mil metros.
Embora na actualidade existam cinco castas preferenciais, nas vinhas velhas do Douro há perto de uma centena de variedades. O solo de xisto é o traço de união e agente fundamental para o Vinho do Porto. É desta imensidão de factores que resulta a grande complexidade dos vinhos. Até 1986, o envelhecimento fazia-se obrigatoriamente em Gaia, onde vinha respirar ar mais húmido. A montante estavam as quintas e junto ao Porto as caves dos exportadores.
Hoje, o vinho já não desce o rio em barcos rabelos, que outrora demoravam três dias e três noites para fazer os 150 quilómetros que distam entre o Pinhão e a ribeira de Gaia. As embarcações são agora património cultura das duas cidades irmãs da foz do Douro.
Mas o vinho do Porto continua a ser tradição e ritual, e sinónimo de acontecimento. Num edifício portuense com clara traça britânica do século XVIII fica a Feitoria Inglesa. De grémio comercial tornou-se num verdadeiro clube, que hoje ainda mantém os almoços de quarta-feira.
Ao vinho do Porto pode também chamar-se remédio. Nos trópicos bebia-se o Quinado: o Porto com quinino era usado contra a malária. Mas a sua maior eficácia sente-se no coração, nos afectos...
Tim Bergqvist, da Quinta de La Rosa, lembra a vez em que o seu avô, o exportador Alberto Feuerheerd, juntou à mesa dois amigos desavindos... O repasto terminou com a tradicional garrafa de vintage. Quando se esvaziou eram novamente todos amigos. Um ano mais tarde, os amigos outrora desavindos ofereceram ao apaziguador uma garrafa em cristal da Irlanda, ainda hoje na Quinta de La Rosa, com capacidade para três garrafas de Porto, uma por cada um dos amigos. «O vinho do Porto cura tudo menos a morte». O Porto é um remédio santo ou um vinho imortal.
Douro é uma palavra céltica de significado desconhecido, mas com um vinho de fama mundial e um outro a fazer-se de excelência, bem se pode dizer que é de ouro este vale e este rio.
Há quem diga que todos os vinhos seriam do Porto se pudessem ... mas talvez não todos. No mesmo vale do Douro nasce também num vinho natural, um vinho de pasto que em tempos lutou pela existência. O Porto e o Douro são dois irmãos separados à nascença.
O vinho do Douro renasceu, mas até há uns anos poucas casas se atreviam a avançar. O mosto das uvas que não gerava vinho do Porto ia quase todo para destilação. Mas uma revolução soprou pelo vale, multiplicando os investimentos e as ousadias. Os lavradores do Douro já não têm receio de dar hoje a beber os seus vinhos de mesa. É um verdadeiro regresso às origens.
O vinho português nem sempre é bem visto fora de portas. Por isso, os lavradores durienses sabem que o futuro passa pela qualidade e por muito trabalho, e há a esperança de que o Porto ajude o Douro no estrangeiro, com a sua notoriedade e a fama.
A região duriense é talvez a mais aristocrática das regiões vinhateiras portuguesas. Não apenas por ser o berço do Porto, mas pela massa crítica que se dedica às vinhas. É uma terra de visionários, de gente à frente do seu tempo, desde a célebre Ferreirinha ao barão de Forrester, contrário à aguardentação dos vinhos. Mais recentemente de Fernando Nicolau de Almeida, criador do Barca Velha, ou José Ramos Pinto Rosas, que modernizou a viticultura duriense.
O vale do Douro é um encanto para os olhos. A natureza tem ali uma força diferente e a acção do homem é de espanto. Contudo, fazer vinho nestes fortes declives tem custos elevados. Num mundo em que a concorrência é global, a sabedoria e a inteligência têm de trabalhar juntas para que haja futuro.
Quem gosta de bom vinho não passa sem um Porto e os que provam um bom Douro não lhe ficam indiferentes. A região é grande, diversa e generosa o suficiente para nela caberem dois vinhos de excelência e sem um ensombrar a vida do outro.
Na região há mais do que tradição. Uma nova geração chegou às vinhas, depois de ter visto o mundo. É sangue novo que traz ideias e dá atenção à qualidade e à personalidade... É uma gente que quer mudanças e aproveitar o que de melhor outras gerações deram ao Douro.
O tempo passa em todo o lado, mas no Douro o futuro nunca se esquece do passado.

Nota: Texto adaptado da reportagem que escrevi para o programa «Da Terra Ao Mar» da RTP 2.

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