Há vinhos para todos os gostos – quiçá até para quem não gosta
de vinho. Tenho o meu, e não sendo o único que me interessa, é o que me toca.
Qual é o meu gosto? Penso que, como toda a gente, não tenho um padrão a preto e
branco, nem mesmo com densidades de cinzento, mas com todas as cores.
.
E dou graças a Deus pelas contradições...
.
Há vinhos para gostos, conceitos, tesouraria... Que mal tem
fazer vinho para as massas? Nada, só que pode ser entediante, pois a tendência
é para seguir os mesmos caminhos. Independentemente da qualidade intrínseca do
vinho.
.
Um dos meus tintos preferidos é um vinho para concurso e tem
o condão de agradar ao estreante e ao conhecedor experimentado.
.
Há vinhos perfeitos? Se houver uma definição taxativa talvez
haja. Mas o que há, e com toda a certeza, são vinhos «perfeitinhos».
.
O perfeitinho é mau? Talvez não. Mas não tenho de gostar.
Compreendo perfeitamente quem os faz e quem os encomenda. Lembram-me uma
namorada de Verão, uma francesa linda, de olhos azul-cobalto e cabelo dourado,
boca fina, sensual... cansou-me tanta beleza e simetria.
.
Há produtores que estão no vinho por arte. Outros são
obrigados a fazer cedências por causa do vil metal. Há os que consideram um
mero investimento ou uma forma de rentabilizar a propriedade que compraram para
o fim-de-semana. Há os que insistem numa dissonância, o tropeço pensado ou
permitido. Os perdulários e que perdem alegremente fortunas, os que querem
fazer milhões, os que querem centenas de milhares, os que querem dezenas de
milhares, os que querem milhares, os que conseguem produzir numa garagem e os
que fazem num alpendre.
.
Haverá mais géneros, mas a ideia é esta. Todas válidas e
que, por si, não significam bom nem mau, prazer ou desgosto. Não entro na
discussão se é mais difícil fazer uns milhões ou 2.500 garrafas – isso é
misturar competência técnica, com ou sem talento artístico e criativo ou
capacidade de diferenciação – com artesanato, com ou sem talento artístico,
capacidade de diferenciação ou competência técnica.
.
Só ao de leve – porque não é assunto meu – não me parece
certa a aposta na promoção duma só casta. Penso que devíamos vender Portugal e
isso quer dizer lote, até talvez só castas portuguesas... mas não tenho de
pagar ao enólogo, ao técnico de viticultura, ao adegueiro, aos vindimadores, os
fitofármacos ou os do biológico, nem designer, nem rótulos, nem gráfica, nem
vidro, nem rolha, nem cápsula, nem selo de certificação, nem a comerciais, nem
viagens, nem pavilhões em feiras...
.
Vou dar um exemplo pessoal. Com o tempo comecei a
compreender o meu pai e suas opções. A minha frustração, quase zanga,
adolescente deu lugar a um agradecimento. O meu pai é artista plástico – agora chamam-se
artistas visuais – e cresci entre telas, madeiras, cobre, pincéis de pêlo de
marta, diluentes, petróleo, tinta de óleo (entediantes esperas para que secasse
e pudesse voltar a dar tinta), vernizes, espátulas, cavaletes, estiradores,
cadeiras altas, papel, aguarelas, desilusões por preferir o inacabado ao
acabado...
.
O meu pai, hoje com 90 anos, não pinta; falta-lhe precisão
na visão, segurança na mão e outros problemas físicos comuns nos velhos – velho
é uma palavra bonita!
.
O nome do meu pai não é conhecido do grande público, nem
mesmo de toda gente que anda no negócio. Há questões geracionais,
afastamentos... Consta da mais ampla obra publicada, que conheço, de resenha de
artistas plásticos portugueses do século XX. Está presente em museus de vários
países, em colecções privadas, em Portugal e no estrangeiro, mais ou menos
conhecidas, em instituições – pese que nunca tenha gostado nem fosse particularmente
dotado para o retratismo.
.
O meu pai deixou de pintar, se não erro, em 1998, quando
teve um acidente vascular cerebral, que não deixou mossas, aos 74 anos, idade
produtiva em qualquer actividade intelectual. Tive pena. Já há muitos anos que
não expunha a solo, apenas em colectivas.
.
O meu pai tinha/tem talento e foi reconhecido bem no início de
trabalho. A sua geração está reduzida, embora permaneça um fresquíssimo e
maravilhoso Júlio Pomar. Começou bem ou até muito bem.
.
A dada altura foi pai e deparou-se com um dilema:
.
– Pinto o que gosto e quero ou pinto o que gosto menos, que
não pensara, que recusara, mas que me dá para pagar as despesas, agora que
tenho filhos?
.
Compreendo-o e hoje enternece-me e agradeço-lhe a abnegação.
Deixou a vanguarda portuguesa – sem que algum par o tenha criticado pela frente
ou nas costas, porque essas coisas acabam sempre por se saber – e dedicou-se ao
facilmente vendável – e nunca foi um Tony Carreira ou Toy da pintura – nasceu
uma frustração que deu origem a alcoolismo, em que foi, cada vez mais, desistindo
dos bons vinhos e bons destilados, que em boa hora os deixou, até ao nível «do
que me dá menos variações de humor ou irascibilidade».
.
Apurou a técnica e a análise, estudou sempre e investigou,
chegando ao ponto de ter sido referenciado (talvez injustamente) como quem, em
Portugal, sabia compor tinta à moda duma época ou dum mestre e capaz de
perfeitamente dominar a aplicação de folha de ouro.
.
Tenho em casa uma reprodução – não nas medidas do original –
do retrato de Dom Sebastião, de Cristóvão de Morais, patente no Museu Nacional
de Arte Antiga, onde passou semanas a analisar e estudar a obra. Este que tenho
na parede foi um ensaio para a encomenda que lhe fizeram, e durante anos teve
colados pequenos adesivos a indicar tons... onde vejo um ou dois pretos – a maioria
das pessoas não consegue topá-las – o meu pai tinha talvez mais de dez.
.
Esta partilha de intimidade – provavelmente desnecessária –
serve para mostrar que compreendo e aceito todos os modos de se estar no vinho
e que considero que mais do que alimento, vinho é arte. Sem soberba, penso ter
alguma autoridade para opinar acerca do tema do vinho, pelo que já expliquei.
.
Filho de pai alcoólico, a minha mãe, quando comecei a levar
o vinho para o centro da minha vida, apavorou-se e hoje está tranquila, seria
natural que abominasse álcool ou me tivesse tornado viciado. A única coisa que
me destroça os nervos são as pessoas que se comportavam como o meu pai – que nunca
andou bêbado na rua nem a cair, fazendo tristes figuras. Trabalhei com uma
pessoa, jornalista competente, com quem me impacientava e engolia e engolia
enervado, pois era um sósia.
.
Deixei de comprar a revista Wine por causa duma «besta» –
relativamente polida – cuja opinião é muito levada em conta: José Peñin.
.
Nunca gostei das suas opiniões, embora as lesse, embora o
achasse banalíssimo. Não o leio, porque não me interessa.
.
O José Peñin – que talvez seja boa pessoa e amigo do seu
amigo – sabe mais de vinho em coma induzido do que eu acordado e com 15 cafés. Mas
é um talibã, obrigatoriamente com ideias feitas, muitas delas pouco ou mal
pensadas.
.
Escreveu, dando lições de moral, numa soberba insuportável,
o que deve ser um enófilo. A dada altura sobe ao pedestal para se diferenciar
dos demais e diz qualquer coisa deste género: O enófilo esclarecido é aquele
que aprecia e que sentindo a tentação do álcool a sabe evitar e resistir à
alarve tentação, que é coisa de brutos e alcoólicos... Algo mesmo MUITO assim.
.
Em primeiro lugar, o que escreveu é besteira, mas o que me
indignou foi a soberba. Não estou para ler parvoíces. Além do mais, o que
escreveu traduz que não sabe absolutamente nada do que é a história do vinho e
da cultura do vinho. Do vinho e doutros álcoois.
.
O vinho chegou até nós, em grande parte, porque inebria. Se
foi desenvolvido, apurado, burilado, se implicou estudo é muito por causa do
álcool. Note-se que estar embriagado não é ser-se alcoólico.
.
Grave, muito grave, é beber vinho e conduzir. Embriagar não
é mergulhar de cabeça numa piscina de álcool.
.
O álcool é a droga social do Ocidente, estendendo a
longitude aos locais onde se descobriu ou inventou. Além de ser alimento, desinibidor,
objecto de festejo e brinde
.
Grave é o álcool entre os ameríndios e os aborígenes
australianos, onde a falta de contacto secular com o tóxico causa um total
descontrolo, ao ponto de ser comparável à heroína. O National Geographic
Channel realizou um conjunto de documentários acerca das drogas e o que mostrou
a situação do alcoolismo no Alasca lembra a década de 90, em que se viveu o
píncaro do pesadelo da heroína em Portugal.
.
Volto para o que me trouxe e que é bem mais leve. Ando há
meses para escrever acerca duma coisa e dispersei-me.
.
A tourigação entristece-me. Não há quinta que não tenha os
seus pés de touriga nacional. Os produtores pronunciam touriga nacional com um
sorriso orgulhoso.
.
Claro que é uma grande casta. Claro que dá coisas diferentes
dependendo dos locais. Mas, basta. Começo a tremer cada vez que me ameaçam com
um tinto. Não que a casta seja excessiva – por vezes é-o – mas porque há
demasiados vinhos de touriga nacional.
.
A minha touriga é a franca, que dizem ser caprichosa com a
terra e o clima onde a põem. Tantos enólogos me dizem que é a melhor casta
portuguesa e que só pelo seu temperamento não é a casta que serve de bandeira
ao país.
.
Pois! Digo ainda bem! Deixem-na estar no Douro ou em alguns
locais especiais. Digo, mas pensam diferente. Depois de alcatroarem o país com
touriga nacional, parece que agora vão tourigar a francesa. Até em zonas onde
se demonstrou repetidamente que não se dá bem a estão a plantar. Noutros sítios
até pode ir bem, mas sinceramente noto-a banal fora de sua casa.
.
Aprecio na touriga franca a necessidade que tem de
companhia, não conheço muitos monovarietais – até o vinho que foi, há dois ou
três anos, feito pelo José Mota Capitão, que é perito com esta trepadeira
precisava duma amiga – não me fez palpitar e cantar laudes.
.
Depois transmite o Douro e pouco diz doutros locais. Nisso a
irmã é mais maleável.
.
Tenho-me vindo a aperceber que vem crescendo em mim o prazer
com a pinot noir. O meu homónimo fez um néctar ímpar e a Fundação Stanley Ho
tem notáveis.
.
Há também a touriga nacional das uvas brancas – a alvarinho.
Há bons alvarinhos em «todos» os locais do país. Mas para quê se ela reina em
Monção e Melgaço? Fora de casa, a alvarinho não deslumbra.
.
Quanto a mim – entra uma ou duas provável contradição – a arinto
é maravilhosa em toda a parte e tem um claro brilho em Bucelas. As contradições
estão em aqui, na defesa que se espalhe e que tem um local onde deslumbra.
.
A arinto dá frescura ao chardonnay e ao meu ódio, a antão
vaz.
.
Não querendo generalizar, até porque se podem enumerar
vários vinhos com esta táctica, chateia-me que juntem a antão vaz com a
alvarinho no Alentejo, por vezes até com chardonnay. Se há arinto... é outra
loiça!
.
Não posso dizer que a casta antão vaz é uma má casta, ou não
houvesse uma multidão de defensores, além da tradição – coisa que aprecio.
Simplesmente não gosto.
.
O enólogo Paulo Laureano prometeu-me conversão, que haveria
de me dar a beber vinhos de antão vaz que me mudariam a opinião. Tive de
aceitar o desafio, até porque é interessante. Outra contradição: bebi um antão
vaz maravilhoso, onde senti, pela primeira vez e na sua forma mais nítida e
agradável, coentros – o primeiro Solista, da Adega Mayor, que foi feito pelo
Paulo Laureano.
.
Abomino Vinho Verde tinto! Pretendo continuar. Não querendo
ser egocêntrico, não quero que tentem fazer Vinhos Verdes tintos para quem não
gosta de Vinho Verde tinto. Deixem-no estar com sua tradição e enquadramento na
mesa e de mais cultura.
.
O enólogo Domingos Soares Franco disse-me que se está a
revelar – nos ensaios científicos realizados – que a sousão do Douro não é a
vinhão do Vinho Verde, sendo apenas aparentadas. Como se percebeu, vinhão está
«out», sendo que no Douro tendo a não ser grande fã da sousão, mas faz parte do
todo e tempera.
.
Há uns anos nutria uma embirração pela sauvignon blanc como
a que sinto pela antão vaz. Tenho de dar a mão à palmatória, em Portugal há
bons néctares desta cultivar.
.
Esta já outro dia referi. Quando comecei a prestar mais
atenção e tempo ao vinho, como qualquer novato, deixei-me levar por bocas
alheias. Pateticamente disse mal da cabernet sauvignon. Gosto e gosto muito.
.
Mais sucinto porque tenho menos para explicar: taninos e
bolhinhas, não obrigado. Dispenso espumantes de baga ou doutra tinta.
.
É por preguiça, por uma infantil «parece mal», por uma
infantil e insegura «se não escreve é porque não sabe de vinho», que escrevo
notas de prova. Na grande maioria das vezes é o mesmo que comentar o tipo de
letra do rótulo. Além de que não conheço ninguém que ande pelos supermercados e
garrafeiras à procura dum vinho que tenha frutos do bosque ou notas de
eucalipto. Às vezes justifica-se, mas nenhum vinho é bom ou mau por ter odor a
violetas.
.
Embora goste de vinho com madeira, mesmo marcada, mas não
sou caruncho. Beber fósforos ou tarolos não quero.
.
Chateiam-me os tintos «oak free»... não tenho paciência e
não bebi nenhum que não me cansasse depressa.
.
Outro dia, num concurso, três vinhos diferentes eram iguais.
Brancos de tangerina e madeira fumada. Oh tédio!
.
Penso que se exagera nos elogios que se fazem à fruta que se
sente num vinho! Também às flores, mas sobretudo à fruta. Há tanto mais que me
fascina: os vegetais – maravilha – os minerais – abençoados. Na fruta, uma
grande excepção: os citrinos – a laranja é a minha fruta favorita, bebo
limonadas sem açúcar... é feitio!
.
A grande embirração é ser-se o que não se é. O legislador –
ao longo das épocas – teve por certo que uma denominação de origem controlada
(DOC) significa ser melhor do que regional ou do que vinho de mesa. Por isso,
ou talvez também por isso, que hoje há topónimos portugueses onde entra o syrah
ou a cabernet sauvignon. Bom vinho é bom vinho! Tradição é tradição. A Bairrada
entristece-me por isso – e é terra de belíssimos produtores e gente muito séria.
Atenção: usar castas estrangeiras numa DOC não é falta de carácter nem de
seriedade.
.
Não sei se sou muito levado a sério pela malta do vinho.
Escrevo esquisito, invento palavras, marimbo-me para a – desculpem – plebeia consideração
acerca da relação entre a qualidade e o preço... qualidade é qualidade,
raridade é raridade, marca, é marca... ou tenho dinheiro para ter ou não compro
ou protesto.
.
Não sei se sou levado a sério ou se pensam que sou amalucado
– tenho-me vindo a aperceber, mas nem é novidade, é uma constante, pelo que não
me surpreende que o pensem – pois por vezes digo umas coisas que causam uns
sorrisinhos e umas expressões que mo fazem pensar nessa hipótese. Mas estou
literalmente nas tintas, até porque não é de hoje. Além de que é comum nos
artistas, coisa que cada vez mais penso ter de nascimento: já me assumo como
poeta e reconheço que fiz um grande erro em não ter estudado Belas Artes.
.
Este parágrafo é importante, porque outro dia repeti um
vinho e surpreendi-me. Muito bem surpreendido. Gosto de descobertas. É por
causa dos sorrisinhos e comentários que – por respeito ao produtor – não citarei
o vinho, pois posso ser mal interpretado, como fui, podendo causar, se
interpretarem da mesma forma, a sensação de estar a querer ridicularizar o vinho.
.
Nele encontrei o que nunca esperei ou experimentei: o
perfume do haxixe.
.
Por que não? Se há acetona, alcatrão, fermento de pão,
brioche, pimento, coentros, esteva, tangerina, lenha de azinho... por que não
haxixe? Eufemisticamente: meta-eucalipto!
.
A expressão fica aquém e é pouco rigorosa...
.
Cheirava a haxixe e essas raridades valorizo muito
.
.
.
Nota: Pintura de David Ligare
Sem comentários:
Enviar um comentário