quinta-feira, outubro 29, 2015

Fonseca regressa a casa

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Pelo Douro vai-se para o mundo. Roubei esta verdade ao Fernando Pessoa para dizer do vale mais famoso de Portugal, onde a história se escreveu quase sempre com vinho e a água de o levar, muitas vezes assassina.
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Foi um rio selvagem até quase hoje.
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Em Lisboa estava a Corte, que ia a Santarém e a Évora, a Sintra, Queluz e Cascais. Bem podem os portuenses garantir que o Infante Dom Henrique nasceu no Porto, mas a verdade é que nenhum Rei lá dormiu em casa própria.
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A falta de visitação régia não tira brilho nem cria esplendor à cidade do Porto, que só na lei não é das duas margens. De Portus e Cale nasceu Portugal, Porto e Gaia. No lado direito está o brilho e no esquerdo o lume. De montante chega a razão.
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Elogiar e glosar o labor das gentes do Porto é tão merecido como para outros povos, entre Cevide e o Cabo de Santa Maria, de Paradela ao Cabo da Roca, da Ponta Sul, no Ilhéu de Fora, das Selvagens, ao Ilhéu de Monchique, nos Açores, do cimo do Pico à beira-mar da água fria, de que tanto gosta a sardinha, que tanto dela gostam os portugueses. Da Galiza até onde exista alguém a falar português.
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É isso, mas também certo que a fama dos vinhos do Douro não se gerou, mas criou, consubstancial à alma-amor.
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Tanto faz que Luís XIV tenha dito que o Vinho do Porto é o vinho dos reis e o rei dos vinhos. Também o disse do Champanhe. Também o disse do Tokaji. Até há quem acuse outro Luís, de três flor-de-lis de ouro sobre azul, de ter afirmado tal verdade.
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Tanto faz que a demarcação do Vale do Douro seja a mais antiga do mundo. Também os italianos reclamam para a Toscânia. Também húngaros e eslovacos exigem para Tokaji.
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O que não tanto-faz é o mundo, dos galegos que ajudaram a inventar terreno lavrável, dos camponeses daquela terra, dos morgados, dos prelados, dos ingleses, dos escoceses, dos alemães, dos… não de todo o mundo, mas metaforicamente do mundo todo.
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O Douro vinhateiro não se fez sozinho, nem só natureza, nem só homem. Tanta gente diz terroir, palavra com um conceito intraduzível, feita de chuva, sol, vento, abrigo, secura, humidade, luz, ensombramento, noite, latitude, longitude, altitude, Norte, Sul, Este, Oeste e pontos colaterais, solo, subsolo, flora próxima da vinha, flora até onde a vide sente, fauna, casta, sabedoria de campo e sabedoria de adega. O homem faz o vinho, não nasce numa fonte – horas, pressas e vagares.
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Terroir aparece em todo lado, não há quem não o encontre no seu sítio e com ele diga privar, como se Dom Sebastião se tratasse. É como Dom Sebastião, uns o viram, alguns o vêem e verão quando sempre – e no Verão também há neblinas marítimas.
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É Património da Humanidade, estatuto pela UNESCO e verdade, porque os nomes do Douro têm origem, mas não sei se têm nacionalidade; são Silva, Santos, Pereira, Olazabal, Guedes, Niepoort, Ferreira, Burmester, Pinto e pelo Douro vai-se para o mundo.
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O meu sangue do Sul não me deixa ser outra coisa que não português, que é ter na mesa Vinho Verde e gaspacho e passar horas sem tempo a viver a mesa. Dizem que as melhores laranjas são as do Algarve. Garanto que são as das laranjeiras de Castro Verde – não por dali ter tirado sangue, mas porque são muito doces e frescas de ácido. E o azeite? Do Douro. E o vinho? Do Douro. E a praia? De Tavira. E a poesia bruta do granito domesticado, chamado românico? Eterno do Minho.
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O Vinho do Porto é fidalgo, por isso há só duas famílias no Douro; a que bebe Porto e os camponeses, que dizem vinho fino. Os apelidos do Douro: Fonseca é inglês, como MacBeth é português, assim se chamava um colega de escola.
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Porquê tudo isto, esta explicação longa? Porque conto duma casa. Porque não há hoje sem ontem e o destino, que a Sul dizemos fado, existe para existir e desejar. Eu não sou eu. O meu corpo é resultado de antepassados, parentes de carne, e a cada sete anos é outro regenerado. O meu espírito encarnou muita gente.
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Já quase me esquecia do destino.
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Só queria só escrever que a casa dos Fonseca, no Pinhão, voltou à firma. A companhia é familiar e britânica, talvez ainda tenha sangue Fonseca. Tanto faz, porque do Douro vai-se para o mundo e os nossos genes unem-se numa mãe comum – a Eva, como dizem os historiadores.
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Um dia bebemos Vinho do Porto e noutro chamamos-lhe vinho fino. Mas as coisas são da terra como os nomes. No Pinhão, a casa voltou.

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