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A crónica é sobre vinho, garanto! Contudo, há mais coisas
para escrever. Quem não quiser ler além do estritamente vínico que salte para
onde o texto retoma a sua cor habitual.
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Tenho uma frustração: não segui belas artes. No tempo em que
estava no liceu – Escola Secundária Gil Vicente – a minha primeira opção para
prosseguir os estudos era pintura. O design atraía-me e a escultura nem por
isso. Sonhava também com casas, mas arquitectura estava fora de opção.
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Acabei por desistir por causa de três cadeiras absolutamente
inúteis para quem quer seguir pintura, design de comunicação ou escultura:
matemática, física e química. Nunca percebi por que haveria de ser flagelado se
quem ia para letras estava dispensado – aliás, a única via em que o terror estava
ausente.
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Anos depois compreendo a minha frustração. O sentido de
justiça e a falta de lógica toldavam-me a razão. Birra?... Penso que não.
Olhando para esses anos e relativizando, percebo que seria justo que todas as
hipóteses pedagógicas deveriam ter matemática. Isso, só por si iria fazer
prosseguir os estudos sem ser por fuga.
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Mudei-me para letras – sem sacrifício, pois a escrita e a
história sempre estiveram comigo como as artes plásticas. Não me sinto ou senti
frustrado, propriamente, apenas desgostoso. Nunca fui bom aluno a matemática,
desde a primeira classe. Até ao nono ano safei-me à tangente.
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No décimo e décimo primeiro a loiça era outra. Dizia-me uma
Professora (com «p» bastante grande) que não compreendia como era possível ter
as notas que obtinha, quando era o primeiro ou dos primeiros a entender a
matéria.
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Na verdade, esses patamares de matemática foram, em toda a
minha vida escolar, os que melhor entendi em números. Porém, a minha vocação
era tão grande, que o resultado era em linguagem binária: 0 e 1 – zero e um!
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Tive explicadores e ajudas familiares. Entendia, tudo bem.
Porém, chegada a véspera do teste todo o conhecimento se evaporava. Entendo
hoje, a reacção psicológica… ter matemática, física e química não tinham lógica
nem função. Já a geometria descritiva não me causava dores… fazia sentido para
o futuro que ambicionava.
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Acabei por mudar de área vocacional. Cheguei ao 12º ano com
19 anos. Um professor – professorzeco, com «p» minúsculo – de filosofia gostava
muito de ser gozão. Mas gozo humilhante. Na primeira aula decidiu tentar
enxovalhar-me, por causa da idade com que chegava ao último ano do secundário.
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No final, dirigi-me a esse senhor – baixinho de altura e
carácter – e enfrentei-o. Baixou os olhos e engasgou-se ligeiramente. Pelos vistos,
nenhum aluno o enfrentara nos olhos e o contestara. Expliquei-lhe por que tinha
19 anos e ia terminar o ano lectivo com 20.
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Rancoroso, ainda tentou ensaiar alguns achincalhamentos. A minha
resposta visual recuavam-no e seguia a tentativa de humilhação para outro aluno.
Sempre muito capaz nas coisas das letras e com leituras acertadas, espantei-me
quando saiu a nota da primeira avaliação: 2,5 valores.
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Percebi que não podia permanecer com o sujeitinho como
professor. Anulei a matrícula e candidatei-me a exame nacional: 16 valores. Nas
provas de admissão à faculdade, outros 16 valores. Confirmei o quanto era
pequenino esse sujeitinho, que era professorzinho.
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Com demasiado tempo livre, na altura o 12º apenas tinha três
cadeiras (hoje não sei) e eu tinha anulado uma, tornei-me jornalista em Janeiro
de 1990, no Diário Económico. Cresci imenso e fiz-me mais crescido, mimetizando
os mestres.
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Tardei em acabar o curso de história, e cedo percebi que não
o iria utilizar, e cá continuo às voltas com reportagens, sobretudo. Disciplina
maior do jornalismo, que tenho o privilégio de exercer regularmente.
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As artes não morreram. Ainda hoje desenho e pinto, com
frequência insuficiente. Quem olhar para o blogue preto perceberá que a arte
vive-me e que a uso não como ilustração, mas como complemento do texto, em
diálise – embora haja situações em que são ilustrações e noutras em que a
ilustração é o texto, em forma de legenda.
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Teimo em gostar de arquitectura e dou-me a liberdade de a
julgar. Não tenho habilitações académicas ou de tarimba, mas se todos podemos
discutir literatura, música ou cinema, por que não arquitectura?!
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Bem, a arquitectura não é uma ciência artística, embora
alguns arquitectos e paisanos pensem que sim. A arquitectura, como o design ou
a enologia, é saber técnico. A estética vem por acréscimo – certo disso é que
nunca aspirei a seguir arquitectura, licenciatura que, à época, era ministrada
nas faculdades de belas artes. Tanto quanto sei, hoje está enquadrada em
universidades técnicas.
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Sendo arte ou ciência técnica, a arquitectura pode ser
discutida pelos curiosos e ignorantes, como tudo. Viva a liberdade! Álvaro Siza
Vieira é um dos melhores arquitectos do mundo, vencedor do Prémio Pritzker, referente
a 1998, pelo Pavilhão de Portugal na Exposição Internacional de Lisboa. Aquela
pala é fantástica e espero que o engenheiro – deve ter passado semanas acordado
– que fez os cálculos estruturais tenha ganho também um troféu, não consegui
apurar.
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Nas minhas liberdades de discussão de arquitectura, afirmo
que detesto o trabalho de Álvaro Siza Vieira. Em parte é para chatear a minha
prima, Maria Carolina Palma, que exerce e tem nesse arquitecto do Porto um
marco de referência.
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Um dia disse-lhe desastradamente:
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– A arquitectura do Siza Vieira não é gira!
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Deu-me uma resposta em forma de tiro de canhão:
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– Giros têm de ser os brincos.
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Assunto arrumado.
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Na verdade, o que me chateia na obra de Siza Vieira é a
obsessão pelo branco. Não é a síntese do traço ou o conceito dos edifícios. É o
branco, que se torna melancólico. Para melancólico basto eu!
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É certo que são conhecidas bizarrias, (birras) e teimas.
Quem as não tem? Tratando-se de trabalho (técnico) criativo, Siza Vieira tem
todo o direito de defender a sua estética e de a exercer.
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Não vou enumerar o que gosto e não gosto nos edifícios de
Siza Vieira, digo somente que o Pavilhão de Portugal é uma construção que o mundo
merece ver, nem que seja em fotografia.
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Tenho tido a possibilidade de ver e tocar desenhos, em
liberdade, de Álvaro Siza Vieira, nomeadamente na Quinta do Vale Meão. À solta,
em rótulos ou por aí, os traços agradam-me muito.
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Enófilo, já se percebeu, tem concretizado adegas e rótulos. A
Adega Mayor, em Campo Maior, é um objecto para se ver. O rótulo que se mostra
no vinho que Rui Azinhais Nabeiro – homem dos maiores que Portugal deu à luz –
é duma simplicidade, ou síntese, arrasadora.
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Tratando-se dum vinho de homenagem, o Siza 2009, não o irei
classificar com uma nota redutora, ainda que assumidamente subjectiva e
excêntrica. Não tenho esse direito. É uma homenagem que um amigo fez ao outro.
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Bonito – como os brincos que a minha prima me atirou à
prosápia – o rótulo não é uma ilustração, mas parte integrante dum objecto que
se faz também de vinho. O vinho, pretexto para esta crónica, é obra dos
enólogos Paulo Laureano, o chefe, e Rita Carvalho, que tenho pena ter deixado
de exercer.
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O que é este Siza 2009? É um abraço alentejano, que a casta alicante
bouschet deu o corpo e o espírito. É um alentejano verdadeiro. É um vinho
escuro, que se reflecte na cor do rótulo e se aviva no branco que Siza Vieira
tanto aprecia.
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Não quero falar em descritores, que são coisas a que não dou
um valor determinante. Porém sublinho o cacau e a potência educada como se
revela na boca.
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Produziram-se apenas 2.500 garrafas. Ainda bem que são
poucas, pois acrescentam valor ao desejo de o beber. Álvaro Siza Vieira e Rui
Azinhais Nabeiro merecem um vinho destes.
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Origem: Regional Alentejano
Produtor: Adega Mayor
Nota: X/10
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