quarta-feira, março 12, 2014

Se sou um triste? Sempre não sei, mas entristece-me quando se acaba uma garrafa de vinho e ninguém quer abrir outra.


Caído num campo de papoilas, que é flor que não existe. Ensonado, não sei se mereço a sombra fugidia da fronteira das folhas da árvore ou se estremeço pelo passar duma nuvem.
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Se me mandassem, ia. Quase a qualquer lado desde que não fedesse. Tal como a fé, a solidão é íntima, e tantos indivíduos juntos são subtracção de individualidade.
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Não tenho nada contra, mas não gostava de falar com Deus. Os meu problemas, que para mim são grandes, não interessam, e muito menos a Deus. E com Cristo? Dizia-lhe o quê? Ah! Admiro-o. Que mais? Elogios merecidos seriam todavia lisonja, ainda que disso ele não pareça padecer.
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O que comemos... o que bebemos... a arte... merecem conversa. Íntima, porque cozinheiros, enólogos e artistas-visuais (agora diz-se assim) são todos criadores, têm egos grandes ou têm egos pequenos, o que dá mais nas vistas. Quero lá saber do conceito. Quero é ter sentidos e pensar, provavelmente pouco, no trabalho que aquela coisa deu a fazer...
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Se pensar bem, nem o vinho me interessa. Falar de vinho é como descrever uma noite de sexo. Recomendar um vinho é como sugerir uma puta. Citar anos, colheitas, é lembrar a idade da meretriz e disfarçar vidas de merda que se tiveram ou vidas de merda que se têm, porque as boas acabaram.
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Vinho é amor e a bebedeira é o seu orgasmo. Que tântricos, profetas sábios, diletantes de merda digam o que disserem, manterei a jura: o vinho só existe porque é droga. Para mim, bagaceira é heroína e água-pé chamõ (como se escreve esta droga de merda?) que os ciganos vendem na rua Augusta, aos tansos e aos turistas... Rua Augusta é aquela rua de Lisboa que só tem interesse porque liga dois sítios que valem a pena.
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O álcool... o vinho, para simplificar e usar o nome da mais nobre das bebidas depois da água... é mãe e canalha, além de tanta coisa.
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O Neruda escreveu a «Ode ao Pão». Fez bem. É tudo verdade, mas é uma chatice! É tão nobre o propósito que se torna piegas... como quase tudo o que os neo-realistas inventaram. Não desvalorizando, é gosto e dor epidérmica.
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A «Ode ao Pão» são umas ceroilas penduradas na fachada dum prédio que merecia ir abaixo, e que, apesar de virada para a rua, mostra as intimidades.
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E não é por causa das intimidades, mas da vergonha de não ter coragem em andar em pelota na rua, mas ter a vaidade de passear de fato-de-treino numa rua de cidade com estatuto de cidade.
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Gosto de comer e aborrecem-me as longas conversas de fios castanhos a ornamentar pratos, dos banhos-maria e das afirmações ignorantes sobre artes que hoje ninguém sabe ou ouviu falar... ou os foie gras de ganso-patola ou os quinhentos jotas dum presunto que nunca terei dinheiro para comprar, que apenas poderei sonhar, mais babado e triste do que o faminto que apenas pede uns trocos para comer.
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O que é ser-se rico? A pergunta é... e todas as respostas são tão estúpidas quanto as cantorias do bêbado-lerdo que existe em todas as aldeias ou se dilui nas cidades, misturado na indiferença, abaixo do nível do cagalhão do cão.
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Se for rico o que farei... se souber o que é ser rico, se o dinheiro que tiver me satisfizer – uma forma de definir riqueza... compro umas análises e vou embebedar-me para Londres e Paris! E comer nos sítios mais caros e exclusivos, onde metade dos comensais se mostra à outra metade que gostaria de ser reconhecida... sobram dois casais... e os empregados também gostam de se mostrar, de mostrar que sabem, que merecem estar ali...
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Só beberia vinho para milionários... russos, árabes, brasileiros, chineses.... de que serve ter dinheiro para beber do melhor e a única coisa que se tem para dizer é algo como afirmar que se foi para a cama com uma garrafa, puta?
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Ah! Os taninos!... Ah! Os aromas a frutos silvestres! Ah! As notas de couro... ah a puta que o pariu, porque vinho é vinho, felizmente é todo diferente, mesmo o mau, e adjectivar vinho é tão entediante como comparar narizes ou as nuances de azul e verde nos lápis-de-cor.
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Não! Se for rico embebedo-me com o mais caro e quero vomitar todos os diamantes que não existem na bebida.
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Aí tenho uma história... fui para a cama com uma puta, não sei se foi de rua, porque estava bêbado e ela parecia viciada em crack... ou cocaína, porque não me lembro... História é transgredir e no dia seguinte ter susto, viver meses amedrontado, recear fazer análises... não saber se se sobrevive à loucura, que tem de durar até... não saber se sobreviverei, amedrontado, quando sei, desde quase sempre, que um dia irei morrer.
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Sim! Viva o álcool e as bebedeiras, de vinho rasca, curadas à sombra, duma árvore ou do lindo branco duma linda nuvem que estraga o azul do céu.
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Nunca vomitei na cama. Isso enche-me de orgulho... e as outras figuras tristes apagam-se é uma sina, como a de não sofrer de ressacas.
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Com o devido respeito:
ODE AO PÃO - de Pablo Neruda

Pan,
con harina,
agua
y fuego
te levantas.
espeso y leve,
recostado y redondo,
repites el vientre
de la madre,
equinoccial
germinación
terrestre.
Pan,
qué fácil
y qué profundo eres:
en la bandeja blanca
de la panadería
se alargan tus hileras
como utensilios, platos
o papeles,
y de pronto,
la ola
de la vida,
la conjunción del germen
y del fuego,
creces, creces
de pronto
como
cintura, boca, senos,
colinas de la tierra,
vidas,
sube el calor, te inunda
la plenitud, el viento
de la fecundidad,
y entonces
se inmoviliza tu color de oro,
y cuando se preñaron
tus pequeños vientres,
la cicatriz morena
dejó su quemadura
en todo tu dorado
sistema de hemisferios.
Ahora,
intacto,
eres
acción de hombre,
milagro repetido,
voluntad de la vida.

Oh pan de cada boca,
no
te imploraremos,
los hombres
no somos 
mendigos
de vagos dioses
o de ángeles oscuros:
del mar y de la tierra
haremos pan,
plantaremos de trigo
la tierra y los planetas,
el pan de cada boca,
de cada hombre,
en cada día,
llegará porque fuimos
a sembrarlo
y a hacerlo,
no para un hombre sino
para todos,
el pan, el pan
para todos los pueblos
y con él lo que tiene
forma y sabor de pan
repartiremos:
la tierra,
la belleza,
el amor,
todo eso
tiene sabor de pan,
forma de pan,
germinación de harina,
todo
nació para ser compartido,
para ser entregado,
para multiplicarse.

Por eso, pan,
si huyes
de la casa del hombre,
si te ocultan,
te niegan,
si el avaro
te prostituye,
si el rico
te acapara,
si el trigo
no busca surco y tierra,
pan, 
no rezaremos,
pan,
no mendigaremos,
lucharemos por ti con otros hombres,
con todos los hambrientos,
por todos los ríos y el aire
iremos a buscarte,
toda la tierra la repartiremos
para que tú germines,
y con nosotros
avanzará la tierra:
el agua, el fuego, el hombre
lucharán con nosotros.
iremos coronados
con espigas,
conquistando 
tierra y pan para todos,
y entonces
también la vida
tendrá forma de pan,
será simple y profunda,
innumerable y pura.
Todos los seres 
tendrán derecho
a la tierra y a la vida,
y así será el pan de mañana,
el pan de cada boca,
sagrado,
consagrado,
porque será el producto
de la más larga y dura
lucha humana.

No tiene alas
la victoria terrestre:
tiene pan en sus hombros,
y vuela valerosa
liberando la tierra
como una panadera
conducida en el viento.