quinta-feira, fevereiro 19, 2009

As denominações

França é a madre das denominações de origem, onde o vinho reina acima de todos os produtos, mas onde o queijo tem também um peso especial. Portugal pode ter construído a primeira denominação protegida do mundo, a demarcação do Douro, embora os amigos húngaros e eslovacos garantam que foi a de Tokay.
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As denominações de origem (controlada, para os vinhos, e protegida, para os restantes bens alimentares) nasceram para garantir que um determinado produto é oriundo de locais onde a produção conseguiu fama e renome. A questão é antiga.
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As denominações de origem nasceram para assegurar que um determinado produto provinha dum determinado local, onde eram exercidas determinadas práticas, com determinados componentes e com definidas balizas de resultados.
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O mercado, que impôs a necessidade de certificar as produções, evoluiu. Os contextos alteraram-se. O mundo abriu-se. A economia transformou-se e a sociedade também. Estes factos criaram desafios às denominações de origem estabelecidas.
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No vinho, no velho mundo, a Europa, havia as castas, as tradições e as regiões. No novo mundo, as oportunidades, sem passado nem limites ou objecções. Os novos países produtores socorreram-se das castas que pensaram ser melhor adaptadas às suas características edafoclimáticas, que acreditaram ter maiores capacidades de sucesso , e fizeram os seus lotes, originais ou inspirados na velha Europa. Com custos de produção inferiores, menos limites e burocracias, o novo mundo singrou e conquistou mercados, à custa, claro está, dos tradicionais vinhateiros. Mais tarde, renderam-se à organização por regiões, tal como acontece na Europa.
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De facto, o surgimento das regiões no novo mundo é uma contra-resposta à Europa que também se ajustou às alterações impostas. Não de forma uniforme nem concertada. Cada um por si, como achou melhor e conforme a notoriedade e prestígio de cada uma.
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Se, no vinho, o novo mundo tendeu a imitar fórmulas, nomeadamente as de Bordéus, o velho mundo reagiu imitando o novo mundo e, indirectamente, Bordéus, mas não só. Assim, vai de importar castas e desenhos de lotes.
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Nada disto é, em si, grave. O grave, ou estúpido, é a descaracterização dos produtos das denominações de origem. Porque, o velho mundo, nomeadamente Portugal, modificou os seus critérios de certificação para fazer sobreviver as suas delimitações.
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Não está em causa a qualidade intrínseca dos produtos, mas o se conceito primordial. As iscas à portuguesa são com batata cozida. O mercado pode preferir a batata frita, mas iscas com as frituras da batata nunca serão à portuguesa. Serão outra coisa qualquer. A alheira é com carne de aves; um enchido parecido será sempre um enchido parecido, nunca a mesma coisa. As coisas são o que são, pelo que as denominações de origem devem respeitar o seu passado e conceito.
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Não respeitar o conceito de origem e seus componentes originais é fazer «queijo tipo serra», que não é o da Serra nem o industrial, é um híbrido, que pode ou não ter qualidade. A reacção às transformações do mercado não pode ser o abastardamento do que é tradição. Porque, ou é tradicional ou não é.
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Um vinho com sirah e cabernet sauvignon da Anadia pode até ser o melhor vinho português, mas nunca deveria ser um Bairrada. Nunca! Admito que a casta baga seja difícil de trabalhar, que os vinhos estejam em contra-ciclo, mas, bolas, sem baga não é Bairrada.
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O resultado pode aproximar-se do gosto mundial, internacional, de exportação ou moderno. Mas isso não torna, só por si, boa a qualidade (o ser tradicional também não). A modernização e adaptação aos novos valores também não implica sucesso. O facto é que surgiram vinhos cada vez mais parecidos em todas as longitudes e latitudes.
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A região alentejana – que nunca teve um peso tão grande do vinho na sua economia e que, por isso, se pode dizer que não é uma região produtora tradicional portuguesa, tendo, antes, ilhas com pergaminhos – é quase uma região do novo mundo. No entanto, o resultado final de talvez a maioria dos seus vinhos está muito colado ao de outras regiões do planeta. As regiões do Algarve, que tiveram algum relevo em Portugal, não souberam adaptar-se, e não evoluíram, deixaram-se ultrapassar, pela concorrência e pelo turismo que hoje ocupa áreas que foram de lavoura. Os bons vinhos algarvios que tenho bebido podiam ser australianos, sul-africanos ou californianos. O que faz ali o topónimo Algarve?
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Ao mesmo tempo, embarcou-se também num espírito de que tudo o que vem dum determinado contexto geográfico e com determinados ingredientes de origem tem o direito de ostentar a denominação de origem. Embora a certificação exija o cumprimento de critérios de qualidade, a verdade é que, muitas vezes, a exigência é coxa. É claro que há interesses. Há sempre interesses; porque são muitos produtores, porque a empresa é grande, porque a cooperativa é representativa, etc. Foram estas posturas que adiaram ou esmagaram o Douro, Bairrada e Dão, entre outras, não por ordem, nem pela na mesma escala, profundidade ou capacidade de recuperação.
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Não entendo como é que queijos com denominação de origem protegida podem ser feitos com leite de ovelha, ou de cabra, que não autóctone da sua região. Fazer um queijo tradicional com leite de ovelha lacaune é o mesmo que fazer um cincho afrancesado com leite de ovelha serpentina. Este não é um exemplo real, ou, se é, não é propositado.
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Não compreendo um azeite tradicional feito com azeitonas da variedade arbequina, só porque dá jeito para a mecanização. Não digo que o azeite não seja bom, não contesto o quanto é prático e barato o sistema mecânico, mas acho errado designá-lo de denominação de origem protegida.
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O princípio de delimitar zonas de produção é, em si, de conservação. Por isso, exigir que uma entidade certificadora seja conservadora não é nada de extraordinário. Aliás, o que é estranho é ser-se revolucionária ou em ruptura com o passado. Passado esse que lhe deu a fama e o prestígio. O carácter e a personalidade.
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Por outro lado, em Portugal há duas correntes antagónicas, extremadas. Para mim, nenhuma tem razão. Há a que quer delimitar e certificar tudo o que é tradicional, independentemente da sua qualidade, a que quer criar marcas-chapéu, para abarcar diversas denominações, e a que quer é o seu bairrismo.
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Na primeira inserem-se quase todas as denominações de origem controlada da Estremadura e Ribatejo, que há quem junte, jocosamente, como a região demarcada do vinho a martelo. Será que há alguém que compre um vinho do Cartaxo (por exemplo) porque é de lá, achando que está a fazer uma boa opção?! Na segunda está o forçar incluir coisas diferentes no mesmo saco, criando marcas regionais que não existem, apenas porque é mais fácil vender, apesar de as diferentes realidades nela incluídas implicarem produtos diferenciados. A terceira é a de se criarem novas denominações, idênticas a outras, só porque sim; as variedades de azeitona dos azeites do baixo Alentejo e de Moura são idênticas, mas os azeites têm denominações diferentes, depois há as do Norte, sem grandes alterações, mas implica nova denominação.
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O problema não é haver denominações a mais, mas não saber vender. O problema não é o rótulo, mas o produto e a incapacidade comercial. Os franceses têm bué denominações e reinam no mundo das iguarias, os italianos, idem. Falta aos portugueses amor-próprio e espírito comercial, na postura, e exigência e rigor, na concepção e certificação.
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Nota: Se as denominações têm fortes raízes em França e Portugal, talvez não seja estranho dizer que foram criadas para os ingleses, que se abasteciam de vinhos e iguarias nestes países. Não sei bem, tenho de aprofundar esta ideia. Para já, é apenas um palpite, confesso.

1 comentário:

DonVoxx disse...

Os meus parabens. Há muito que não via por preto no branco, e de forma tão "simples" algo que nos tem - desculpe a expressão- chateado á brava e que ainda por cima quem de direito não vê e ou assobia para o lado.