sexta-feira, fevereiro 09, 2007

Uma saúde por Setúbal

Ouvi dizer a gentes de Setúbal que seria bom que se ganhasse o hábito de chamar apenas o nome da cidade ao vinho e se deixasse cair o moscatel. A ideia é tornar comum pedir um Setúbal como quem pede um Porto. Tem alguma lógica, faz algum sentido. Não dou opinião, não é a minha guerra.
Contudo, noto duas coisas contraditórias: a existência de um hábito sonoro, quase musical, de dizer Moscatel de Setúbal e o facto de não existir uma só casta moscatel, mas várias, até em Portugal. Se pode ser desperdício comercial deixar perder a palavra moscatel, não é menos verdade que de uma família de uvas doces se fazem vários vinhos.
Para mim, que tenho do lado do meu pai umas gerações de lisboetas em cima, o moscatel é setubalense. O Moscatel do Douro só o conheci muito mais tarde. A minha memória afectiva e as recordações propriamente ditas estão com o generoso de a Sul do Tejo.
Notei já que há alguma rivalidade entre as gentes setubalenses (sentido peninsular) e as durienses quanto ao melhor moscatel. Diria que haverá bons e maus vinhos em toda a parte e que um bom moscatel dum local é sempre preferível a um medíocre moscatel do outro. Para não ser escorregadio confesso que, tendo em conta os que provei, o paladar encanta-se mais com os moscatéis do Sul.
Mas já que refiro uma hipotética disputa entre moscatéis tenho de notar que o de Setúbal e o do Douro são feitos com castas diferentes. O Moscatel do Douro faz-se com uvas da casta moscatel galego (moscatel de Frontigan), enquanto o Moscatel de Setúbal nasce de bagos das castas moscatel de Setúbal (moscatel de Alexandria - branca) e moscatel roxo (tinta). Todas estas castas conhecem diversas outras designações, o que prova a sua dispersão, embora a roxa seja tida como inteiramente portuguesa.
A vinha é uma cultura antiga na península Ibérica. Os romanos já faziam vinho por cá. Há registos medievais de produção vinícola em terras setubalenses e até referências a exportações para Inglaterra. Porém, duvido muito que os vinhos medievais tivessem alguma coisa a ver com os moscatéis actuais. Por um motivo: a aguardentação. Julgo saber que a técnica foi descoberta no tempo da expansão marítima e desenvolvida posteriormente ao notar-se que o vinho voltava melhor do que tinha partido. Ao certo não se sabe quando se começou a fazer o Moscatel de Setúbal tal como hoje o conhecemos.
Contudo, parece que em 1797 já era citado numa ementa da Ordem do Hospital de São João de Jerusalém (Ordem de Malta), classificado pelos monges-cavaleiros como sendo «o precioso Setúbal». De ciência certa é a data da instituição da demarcação da região, que aconteceu em 1907/8.
O Moscatel de Setúbal é mais um vinho fortificado português, ou seja que recebe uma adição de aguardente vínica. Tanto para o branco como para o tinto (roxo) há limites mínimos a cumprir. Segundo as normas do Instituto da Vinha e do Vinho, 67% dos encepamentos têm de ser das castas recomendadas. Contudo, a designação moscatel só é atribuída quando 85% do vinho é de uvas moscatel. Uf! É um tratado!
A obtenção da certificação implica ainda que as uvas sejam provenientes de vinhas situadas nos concelhos de Setúbal e Palmela, e em parte da freguesia do Castelo, no concelho de Sesimbra.
Felizmente, as mangas da metrópole lisboeta e as abas de Setúbal ainda não manjaram as terras necessárias ao moscatel. Segundo os dados que apurei, existem menos de 350 hectares vinha moscatel na península de Setúbal, das quais apenas 11 são de uvas tintas.
O Moscatel de Setúbal mais comum é o branco. O moscatel roxo encontrava-se praticamente extinto. No entanto, nos últimos anos várias casas da região investiram em novas vinhas desta casta. Por outro lado, assistiu-se por parte dos enófilos uma maior procura, guiada ora pela saudade ora pela curiosidade. Tanto um como outro são vinhos que sabem envelhecer.
O Moscatel de Setúbal (branco) é commumente descrito como tendo um paladar melado e citrinos. Já que se trata de um vinho destinado a digestivo ou a acompanhar sobremesas, deixo como sugestão alguns doces de tradição setubalense: tortas de azeitão, esses, queijinhos e amores.

2 comentários:

Luis Prata disse...

Bom artigo. Aproveito para dizer que adoro o moscatel da Bacalhoa.. muito bom mesmo.. Também existe o roxo mas ainda não tive oportunidade de o provar..

1 Abraço

João Barbosa disse...

obrigado. Os Setúbal são um espectáculo!
abraço