sexta-feira, fevereiro 09, 2007

Dar uma volta às DOC

NOTA: DEIXEI DE ME REVER NESTE TEXTO.

Uma denominação de origem controlada (DOC) deve servir para atribuir prestígio e estatuto. Não creio que exista alguém que diga o contrário. Parece-me consensual. Porém, uma sigla tão pequenina é potencialmente problemática.
Um dos problemas está no conteúdo da palavra qualidade. O que é a qualidade? Outro dos problemas é a tradição. Até onde se pode inovar? Um terceiro engulho é a área de influência. Até onde se pode ir? Depois há a questão da instituição em concreto das demarcações. Onde se situa a realidade e onde começa o sonho? Talvez haja mais situações de conflito, mas vou centrar-me nestes três pontos.
Primeiro, quero dizer que, para mim, faz todo o sentido a existência de DOC. Não penso é que faça sentido o número que existe em Portugal. Apagar algumas, por que não? Mesmo desagradando a algumas pessoas, talvez faça algum sentido.
O sucesso leva, muitas vezes, a invejas. O mais grave é que há invejosos que não têm pejo em pendurarem-se no trabalho, esforço, brio e mérito dos outros. Quando um produto, no caso vinho, ganhava fama surgia célere quem se dedicasse a falsificar ou a adulterar mercadoria, por forma a beneficiar também ou mais ainda.
Os mixordeiros eram (e talvez ainda sejam) muitas vezes oriúndos dos mesmos locais dos bons produtores, pelo que se associaram regras de práticas às exigências de proveniência nas normas das denominações. A mais antiga demarcação portuguesa (quiçá do mundo – os húngaros e os eslovacos teimam que não) data de 1756. O marquês de Pombal decretou que se pudesse punir com a pena de morte quem adicionasse bagas de sabugueiro ao vinho ou quem levasse vinho para dentro da demarcação.
Como não havia marcas, que só se foram solidificando e enlaçando fortemente ao vinho mais tarde, a preocupação era a de proteger as proveniências. O consumidor apreciava, por exemplo, os vinhos do Dão ou de Colares... não preferia ainda marcas, quanto muito tinha os seus comerciantes predilectos, onde se abastecia habitualmente. Note-se que a marca mais antiga de vinho de pasto portuguesa data de 1850 (Periquita) e que não há muitas mais marcas com identidade tão provecta. Mesmo o Pêra Manca referia-se primeiramente a uma denominação geográfica, antes de se transformar num nome comercial.
Num país sem marcas comerciais de vinho, onde a agricultura tinha um grande peso económico e, dentro desta, a viticultura era a rainha, houve a preocupação de proteger os bons lavradores. O país está tapado de DOC: ao todo temos 29. No entanto, dentro destas quase três dezenas há sub-regiões, cujos topónimos podem surgir nos rótulos, como, por exemplo, Monção, Valpaços, Portalegre e Évora.
Bem, das 29 DOC uma é de aguardente (Lourinhã), pelo que baixam para 28. O total sobe novamente um degrau, porque não estava contemplado o Douro, que apesar de ser coincidente com a do Vinho do Porto é outra denominação. Agora, se todas se começam a usar denominações de todas as sub-regiões chegaríamos ao bonito número de 55! (Note-se que há DOC em que as subregiões somam o total da área, caso do Alentejo, e noutros em que isso não acontece, como a dos Vinhos Verdes, pelo que este número não resulta do somatório de todas as sub-regiões). Bem, mas esse cenário não se põe. O número que vale é mesmo o 29.
O que me pergunto é se existem mesmo 29 DOC. Existem? Com todo o respeito que me mercecem os vitivinicultores dessas regiões, devo perguntar se faz sentido falar-se em DOC que só existem no papel. Será que faz sentido haver DOC e ter de explicar o que são? Não há muito dinheiro para a promoção do vinho português e ainda vai ter de se explicar que uma determinada proveniência existe?
A pergunta é retórica, mas cá vai: alguém bebe ou bebeu Vinho dos Biscoitos? Alguém bebe ou bebeu Vinho de Tavira? Alguém bebe ou bebeu Vinho das Encostas do Aire? Não quero com isto faltar ao respeito aos produtores dessas regiões. Não! Aliás, são apenas exemplos. Poderia citar a maioria das 29 denominações ilustradas no mapa anexo.
Não digo que o vinho dessas proveniências seja mau. Questiono-me apenas se valerá a pena existirem 29 DOC.
É claro que num lado do mercado estão os países do chamado novo mundo, onde tudo é feito em grande e, teoricamente, massificado. Do outro está um mundo rural de pequenas explorações e tradição, onde as coisas se fazem com uma outra atenção. Mas será que o vinho do velho mundo é melhor? Será que vale a pena explicar que existe vinho duma região se esse vinho não trouxer nada de extraordinário ao consumidor e/ou enófilo?
Dir-se-á que há vinhos que têm especificidades próprias tão únicas que justificam a existência duma DOC. Aceito o argumento. Porém não me parece que o justificativo sirva e se aplique a 29.
Quando se fala em qualidade até se arrepia a pele a muita gente e acabam sempre os antepassados a serem chamados à discussão. Dói sempre a honra a muita gente. Somos um povo de gente sensível e pouco dado a tolerar críticas. Ainda assim vou respingar.
Às vezes fico banzo com a qualidade de alguns vinhos. Se é suposto a inscrição dum topónimo indicar qualidade, por que é que há vinho mau certificado? Foi engano? Não creio! É corrupção? Não creio! Então o que é? Julgo que pela a dificuldade em dizer-se que não a um lavrador. Sempre se fez assim lá na terra, pelo que o vinhito está certo. Por outro lado, as entidades certificadoras vivem da venda dos selos de garantia. E há vinhos imbebíveis e intratáveis... e não duma região em concreto, mas de várias. Ou então é o meu padrão de exigência que está desajustado à realidade.
Porém, a noção de qualidade evolui. Volta e meia surgem notícias de desaguisados entre vitivinicultores sobre o rumo a dar ao vinho e à certificação. Há quem prefira a tradição, quem queira a inovação, quem escolha meios caminhos. Haverá sempre opiniões para tudo. Haverá em todas as rotas bom e mau vinho. Porém, quando se certifica há limitações que se impõem. Que liberdade se dá? Que liberdade se pode dar? Todas as opções têm reflexos no mercado. Por último, nesse domínio, a decisão é cruel: o mercado compra ou não? O consumidor valoriza ou paga pouco? Todas as decisões têm um custo.
Mas voltando ao vinho propriamente dito e ao termo denominação. Olho para o mapa das DOC e vejo o mapa da administração pública portuguesa num local. Continuo sem perceber por que é que o Alentejo é um, mas no vinho muda de nome. Explico melhor: percebo que existam os vinhos regionais Terras do Sado, não entendo é que a área se alargue pelos quatro concelhos alentejanos do distrito de Setúbal.
Não me venham com o argumento de que o «terroir» é diferente, porque nesse não caio. Claro que a península de Setúbal é diferente do Alentejo. Claro que o litoral é diferente do interior. Mas é claro que Alcácer do Sal, Grândola, Sines e Santiago do Cacém são diferentes de Palmela, Setúbal e Montijo. Sim, o litoral é diferente do interior. Pois é! Mas o litoral é uma faixa e a jurisdição da Península de Setúbal é larga. Por outro lado, Odemira é tão litoral e tão interior como qualquer um daqueles quatro concelhos setubalenses, mas parece-me que só não está na CVR da Península de Setúbal porque pertence ao distrito de Beja. Faz sentido? Por outro lado, não percebo como vinhas contíguas, com o mesmo solo, uma em Alcácer do Sal e outra em Ferreira do Alentejo dão uma um Regional Terras do Sado e outra um Regional Alentejano. São diferentes? Faça-se uma prova cega, um derby, e avalie-se. Eu aposto no empate, na igualdade.
Todavia, os quatro concelhos alentejanos do distrito de Setúbal (CVR Península de Setúbal) e os concelhos alentejanos circundantes só geram vinhos regionais. Pergunto-me porquê? Serão piores? Serão os vinhos das oito sub-regiões alentejanas superiores ou claramente distintas? Não me parece. Clara e definitivamente, não me parece mesmo nada.
Para baralhar mais as coisas pode afirmar-se que muitos vinhos regionais são melhores ou muito melhores ou muitíssimo melhores que congéneres que ostentam um topónimo no rótulo. Para baralhar mais, à semelhança do que aconteceu em Itália, parece haver em Portugal quem queira fazer vinhos de mesa de topo. E constou-me que vai surgir a Indicação Geográfica Portugal, o que se saúda.
Quando olho para o mapa com as 29 DOC vejo um país vitivinícola que já não existe e um outro que não faz sentido existir. Parece-me que as DOC precisam de levar uma volta. Grande.

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